João Bosco Botelho
Para ter-se a dimensão do quanto essas teorias influenciaram a Medicina oficial, ainda no século XIX, é suficiente assinalar que as ideias alcançaram não só os médicos da Coroa portuguesa, mas também os viajantes, do século XVIII que estiveram no Brasil. Por outro lado, o médico e viajante Carlos Von Martius, em 1844, descreveu os índios brasileiros sob a perspectiva greco-romana, associando a teoria dos Quatro Humores de Hipócrates à teoria dos Temperamentos de Galeno, do século I.
Cabe ressaltar que os métodos de tratamentos em voga na corte portuguesa e a interpretação de Von Martius, ambos baseados nas teorias de Hipócrates e Galeno, eram considerados verdades absolutas entre os intelectuais até a segunda metade do século XIX.
O terceiro corte epistemológico aconteceu com os estudos do frade agostiniano Gregor Mendel (1822-1844), abrindo as portas da Medicina oficial à dimensão molecular.
Os hospitais do Primeiro Mundo já utilizam, na rotina diária, a Medicina molecular. Com o propósito de diagnosticar ou tratar certa doença, colocando a materialidade da saúde e da doença na dimensão molecular, são analisadas as quantidades e as qualidades de uma ou mais moléculas, entre as centenas de milhares que compõem uma célula corporal.
Infelizmente, o pouco tempo para a adequada disseminação dos saberes da Medicina-oficial na dimensão molecular, o alto custo e as dificuldades da tecnologia hospitalar de sair da célula para a molécula restringem esse avanço em poucos hospitais e instituições de ensino nos países em desenvolvimento.
Como uma das consequências da Medicina-oficial molecular, a clonagem estreitou, geneticamente, a multiplicidade das formas e das funções, criando em laboratório seres idênticos, a partir de células retiradas de um indivíduo adulto.
Apesar de assustador, o produto do clone não humano, do mesmo modo como todos os animais nascidos da reprodução sexuada, ao longo do processo de amadurecimento, sofrerá a incisiva influência do social. Desta forma, no momento, não existe perspectiva de eliminar a multiplicidade geradora das respostas do ser vivente frente aos desafios da sobrevivência.
Mesmo sendo teoricamente possível, a clonagem de seres humanos é inconcebível. Não existem na linguagem oral e escrita palavras para preencher a repulsa contra o alucinado ensaio de eliminar a principal característica do planeta: a multiplicidade.
Com mais liberdade para teorizar, se pode pensar que a busca da materialidade não será interrompida na molécula. Nada nos impede de pensar na possibilidade de avançar na direção do átomo.
Se assim ocorrer, a Medicina oficial na dimensão atômica deslocará e substituirá os conceitos da Medicina oficial nas dimensões celular e molecular, do mesmo modo como aconteceu com os humores hipocráticos e os temperamentos galênicos, e, talvez, desvendará os enigmas que persistem e intrigam, aqui e acolá, a Medicina oficial no trato com a Medicina-divina e a Medicina-empírica.
Como a análise retrospectiva induz, sempre, à crítica do presente, é importante refletir, continuamente, sobre os limites da cura de ontem e de hoje. Se formos capazes de rir dos conceitos teóricos hipocráticos e galênicos, não devemos esquecer que, presumidamente, em futuro breve, também seremos motivos de zombaria.