Marco Adolfs
Tenho uma sala no centro da cidade onde costumo meditar, escrever e pintar. Um dia desses, ao entrar na tal sala, tomei um susto enorme ao ver um homem sentado na cadeira da minha escrivaninha.
– Que é isto!? – gritei. – Quem é você!? – continuei, preparando-me para lutar.
– Sou o Julio – ele completou, voltando-se timidamente. E continuou, mais firme: – Julio Cortázar!
– Ah! Claro! – exclamei, abrindo um sorriso de alívio. Disse isso sem sequer pensar no absurdo daquele acontecimento.
– Como entrastes aqui? – perguntei-lhe, não querendo acreditar que ele era um fantasma.
– A casa de nosso pai tem várias entradas – respondeu-me, ainda sorridente, o escritor. Aquele que sempre percebe esse fato, torna-se um escritor capaz de estar em todos os lugares, viajando no tempo e no espaço – continuou.
– E você? Que fazes? – perguntou-me de supetão, acordando-me da minha letargia momentânea.
– Buscava justamente o bestiário – respondi, na hora, o que me viera à cabeça. Sorrimos.
– E você? – perguntei de volta.
– Vim aqui para lhe dizer que pretendo reativar, nesta cidade quente e úmida chamada Manaus o Clube da Serpente – disse Cortázar.
Engoli a seco.
– Mas achas que é possível existir aqui uma reunião de escritores malditos, com suas formas atravancadas de existir e fazer– desafiei.
– Perfeitamente possível – reafirmou Cortázar –, já que a forma de escrever está precisando dessas sacudidelas absurdas e malditas. Não é mais possível uma literatura feita de discursos abusivos e cultos a personalidades; comportada ao extremo; excessivamente clássica ou acadêmica em tempos de internet, blogs – finalizou. Hoje o que prevalece é a não-linearidade das produções. Seja de que tipo for. Chega de escritor de edições pagas, programadas e de discursos personalísticos!... Desses professores chatos, com cara e jeito de século XIX!...Bolorentos e sérios como se tivessem todos um ferro enterrado no ânus.
Cortázar falava de forma incisiva e eu resolvi sentar-me para enxugar o suor.
– Mas porque o Clube da Serpente logo aqui, em Manaus? – indaguei face ao absurdo da proposta.
– Morelli – lembra do Morelli?
Balancei a cabeça, lembrando. Cortázar continuou.
– Conversou comigo um dia desses e me disse que aqui, nesta cidade, o espírito parisiense de seus artistas é muito forte.
Ao relembrar de seu personagem Morelli, sorri.
– Ele não quis dizer espírito parintinense!? – tergiversei, brincando.
Cortázar ficou em dúvida.
– Espírito parintinense!?... Que é isso? – resolveu perguntar Cortázar.
– Espírito de tribo que vive em uma ilha e come jaraqui com farinha... E gosta de tucumã com toada, também,.. E gosta de...
– Chega! – exclamou um aborrecido Cortázar... Estou falando de literatura, e não de tribos indígenas.
– Mas aqui tudo que é artista vive com uma tribo específica... Tem a tribo dos poetas; dos músicos; dos artistas visuais; dos...
– Nossa! Tem muito índio, aqui... – disse Cortázar.
– E cacique! – exclamei, completando o raciocínio... Tem um que só se veste de branco; outro que usa colete; aliás, dois; outro que gosta de usar chapéu, do Panamá... E por aí vai indo, o cocar de cada um... Mas isso tudo é apenas brincadeira minha, seu Cortázar... Aqui os artistas são muitos criativos, essa é a verdade... Porém, pouco unidos... Não dá pra criar nem um clube, não...Vai dar em fofoca, inveja e briga...
Cortázar riu, antes de desaparecer em uma nuvem de poeira.
“Um clube!?... Onde já se viu!?...E logo com esse bando de serpentes!?”, pensei, antes de cair na real.