Amigos do Fingidor

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Uma análise do Eu – 2/13

Zemaria Pinto

As influências
 

Como demonstramos, a poesia de Augusto dos Anjos não nasceu do nada. Havia mesmo, pode-se afirmar, uma predisposição, em redor do poeta, à poesia filosófico-científica, que deve ter sufocado maiores influências das tendências mais vigorosas: o Parnasianismo e o Simbolismo. As referências a alguns dos autores preferidos da escola do Recife, como Spencer e Haeckel, dão a dimensão dessa influência. O primeiro verso do Poema Negro, composição definidora do seu estilo, dá bem uma idéia do que se passava com o poeta: “Para iludir minha desgraça, estudo.” Como veremos mais adiante, Augusto dos Anjos definiria claramente o seu estilo a partir de 1906, quando era um veterano da Faculdade de Direito. Presume-se que os três anos do intervalo ele os passara estudando, absorvendo a nova maneira de escrever, tomando-a para si, elaborando uma linguagem própria, que iria muito além das pretensões de seus colegas de escola.

Num depoimento datado de 1912, ele admite que as suas maiores influências são William Shakespeare (1564-1616) e Edgar Allan Poe (1809-1849). São influências fáceis de serem reconhecidas. As referências a Shakespeare são feitas através de alusões a personagens trágicos seus:   

- Macbeths da patológica vigília... (Monólogo de uma sombra)

Como o rei Lear, no meio da floresta! (As cismas do destino)

Os fantasmas hamléticos dispersos... (Os doentes)

Que festejou os funerais de Hamleto! (Tristezas de um quarto minguante)

Quanto a Poe, autor do poema O Corvo e inventor da literatura de mistério, sua presença pode ser notada na construção das atmosferas sombrias, a que nos referiremos na análise da linguagem. Mas a presença de Poe clama pela presença de um outro discípulo seu, Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), autor de um livro fundamental para a poesia pós-romântica: As Flores do Mal, publicado em 1857, semente do movimento simbolista e raiz profunda de toda a poesia que se fez nos cem anos que se seguiram à sua publicação.

Observe, leitor, estes fragmentos de A carniça, de Baudelaire, na tradução de Jamil Almansur Haddad, e tire suas próprias conclusões: 

Recorda-te do objeto e que vimos, ó Graça,
Por belo estio matinal,
Na curva do caminho uma infame carcaça
Num leito que era um carrascal. 

Suas pernas para o ar, tal mulher luxuriosa,
Suando venenos e clarões,
Abriam de feição cínica e preguiçosa
O ventre todo exalações.
(...)
Moscas vinham zumbir sobre este ventre pútrido
Donde saíam batalhões
Negros de larvas a escorrer - espesso líquido
Ao largo dos vivos rasgões.
(...)
Isso mesmo serás, rainha das graciosas,
Aos derradeiros sacramentos
Quando fores sob a erva e as florações carnosas
Mofar entre os ossamentos. 

Minha beleza, então dirás à bicharia,
Que há de roer-te o coração,
Que eu a forma guardei e a essência da harmonia
Do amor em decomposição.  

Augusto dos Anjos não apenas ecoa Baudelaire, como dialoga com ele, num moderníssimo exercício intertextual. Compare estes versos de Budismo moderno com os dois primeiros versos da estrofe acima:  

Que importa a mim que a bicharada roa
Todo o meu coração depois da morte?! 

Os versos acima nos trazem à mente, leitor, uma outra influência de Augusto dos Anjos, o pintor holandês Rembrandt (1606-1669). Budismo moderno começa assim: 

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.   

O quadro mais famoso de Rembrandt chama-se “A Aula de Anatomia do Doutor Tulp”. Mostra oito cidadãos em torno de um corpo sem vida, cujo braço fora aberto, deixando à mostra músculos e ossos. O Dr. Tulp, responsável pela dissecação do cadáver, tem uma tesoura à mão. E daí, você pode estar se perguntando, não seria mera coincidência? Não, porque o poeta era admirador do pintor, ao ponto de citá-lo nominalmente, transformando-o em adjetivo comum: 

Mostrando em rembrandtescas telas várias... (Monólogo de uma sombra)

Como uma pincelada rembrandtesca... (As cismas do destino 

Falamos das influências estéticas, mas não podemos ignorar as influências filosófico-científicas, fundamentais para a leitura proveitosa da poesia de Augusto dos Anjos. falamos na influência exercida pelas novas idéias que vinham da Europa. Dois autores são particularmente caros aos adeptos da escola do Recife: Spencer e Haeckel.

Herbert Spencer (1820-1903), filósofo inglês, antecipou Darwin na formulação da lei da evolução, estendendo-a a todos os campos da experiência humana. Para Spencer, o conhecimento científico, em permanente evolução, jamais atingirá o limite da realidade absoluta, onde está o incognoscível, porque este transcende a capacidade do conhecimento humano.

Ernest Haeckel (1834-1919), filósofo alemão, foi o principal divulgador do Monismo, doutrina que, como dissemos, prega que o conjunto dos fatos, lógicos ou físicos, pode ser reduzido à unidade: a nossa alma é apenas uma parte da alma universal; o nosso corpo é uma partícula do corpo universal. O Monismo, é preciso dizer, opõe-se ao Dualismo, doutrina que admite a coexistência de dois princípios irredutíveis que se opõem e se completam: bem/mal, espírito/matéria, corpo/alma etc.

Monistas evolucionistas (ou vice-versa?) era como se proclamavam os expoentes da escola do Recife, numa época em que se discutia filosofia naturalmente, nos jornais e revistas, ou nas conversas cotidianas.

Mas a formação de Augusto dos Anjos deve muito também ao filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860). Essa influência, aliás, confunde-se, no mais das vezes, com o pensamento budista, também assimilado e fartamente citado pelo poeta. Podemos simplificar o pensamento de Schopenhauer da seguinte forma: a vida do homem oscila entre o sofrimento e o tédio; o prazer é apenas uma cessação provisória do sofrimento. Schopenhauer saída para o homem na contemplação estética, na prática ética da justiça e da caridade e na vida ascética, longe dos prazeres mundanos. A doutrina budista, milenar, cuja figura principal é Sidarta Gautama Buda, não difere muito, podendo ser resumida da seguinte forma: a vida é sofrimento; a causa do sofrimento é o desejo; é preciso acabar com o desejo para acabar com o sofrimento. O ideal budista é o Nirvana, estágio de não-sofrimento atingido somente pelos iluminados.

A poesia de Augusto dos Anjos é toda pontilhada por citações dessas idéias, sendo recorrentes os nomes de Spencer e Haeckel. Seria ocioso reproduzi-las, posto que são claras e objetivas, embora este seja o “calcanhar de Aquiles” da poesia de Augusto dos Anjos: os termos “científicos”, que tornam indispensáveis o uso de um bom dicionário durante a leitura. Mas observe estas estrofes do poema Queixas Noturnas, de fundamental importância na trajetória do poeta, conforme veremos na análise do estilo:


Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nemmulher talvez capaz de amar-me.
(...)
Melancolia! Estende-me a tu’asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!   

Não ao desejo. Não ao prazer. Melancolia. Dor. Essa é a essência da expressão filosófica em Augusto dos Anjos.