João
Bosco Botelho
A
extraordinária reconstrução grega da doença desvinculada do pecado atingiu os
ritos romanos. Para conter o avanço do laico os teóricos da coisa sagrada impuseram
regras mais rígidas para evitar o erro cerimonial nos ritos, reforçando o rito
puro e construindo novas estruturas polares: piedade (pietas) e impiedade (impietas).
O rito malconduzido, gerando pecado, doença, malefício, infelicidade, seria
consertado por meio de outra cerimônia (expiatio)
para anular a impureza (pecado). Nessa esteira, seguiram-se os muitos cultos
gnósticos defendendo desprezo pelo corpo, pela coisa exclusivamente laica. Como
seguimento, os ritos corretivos dos pecados tornaram-se violentos, impondo
jejuns prolongados e flagelações sangrentas, abrindo caminho às futuras
teorizações do pecado sob a égide judaico-cristã.
Desde
aqueles tempos, não existia consenso em torno do pecado original. Um dos
exemplos mais significativo da negativa do pecado original está fincado na
fundação de Roma, quando Rômulo mata por banalidade o irmão Remo: enquanto
Cícero admite o pecado, no De officius,
III, 41 (peccatum), Horácio defende o
pressuposto de crime, no Epodon líber, VII, 1 e 17-20 (scelus) e Virgílio, afasta a idéia de pecado.
No
Antigo Testamento, nas linhas mais interessantes ligando a doença ao pecado se
destaca a interseção da serpente. A idéia de pecado original no AT se mostra
essencialmente voltada à ordem espiritual (Gênesis 2, 8; 3; Job 14, 1-4; Salmos
50 e Ezequiel 18, 1-32), sem a marca da transmissão à descendência.
A
concepção fundamental do pecado no AT é representada pela associação com doenças,
desgraças, infelicidades e provocando ações para corrigir e evitar novos
pecados não mortais (Samuel, 20,1; I Reis, 2,19; II Reis, 1, 1) e pecados
mortais (Deutoronômio, 14,16; 21, 22; 22,26; Ezequiel, 3, 20; Amos, 9,10). Nas
duas circunstâncias, o perdão divino concedido ao pecador, gerando a cura da
doença, a dissolução da infelicidade ou do nó, seria alcançado por meio da confissão
individual (Gênesis, 39, 9; Josué, 7, 13-23).
Nos
últimos séculos do judaísmo antigo surgiram reconstruções em torno do pecado
original, como fontes de doenças, infortúnios e morte prematura, voltadas à
responsabilidade de Eva, em Eclesiastes, 25-24: “Foi pela mulher que o pecado
começou e, por sua causa, todos nós morremos”.
Várias
passagens dos Evangelhos descrevem a concepção judia do pecado, diferenciando
os pagãos como pecadores por não cumprirem as Leis, pondo a misericórdia de
Deus como possibilidade do perdão puro — Nova Aliança. Jesus Cristo ao vencer o
diabo, removeu o pecado, a doença, o aleijão, a infelicidade.
Ao
contrário às raízes pré-socráticas, outra vez, a doença adere fortemente ao
pecado. No medievo, os teólogos acrescentaram rigores no entendimento da doença
— como obstáculo entre o homem e Deus — como sinal de pecado, em especial, às
moléstias deformantes do corpo, como a lepra.