João
Bosco Botelho
No
período homérico a concepção da doença ligada ao pecado se manteve expressa com
clareza no temor do miasma infeccioso
e hereditário, descrita por Hesíodo, cuja cura obrigava à purificação ritual da
catarse para retirar o pecado-doença.
Entre
os pré-socráticos, o intuito de desvendar a coisa, quantificando-a por meio da
forma e do volume, iniciou outra construção. Empédocles assume especial
importância ao teorizar sobre a origem das coisas fora do poder dos deuses, por
meio da combinação dos quatro elementos: terra, ar, fogo e água. A genialidade
de Empédocles alicerçou a magnífica teorização de Políbio, genro de Hipócrates,
médico da Escola de Cós, por meio da teoria dos Quatro Humores, descrita no
livro Da natureza antiga. Pela
primeira vez na história dos saberes explicou a saúde e a doença no estrito domínio
laico, iniciando o longo processo para retirar dos deuses e deusas a
exclusividade de causar e curar as doenças: “O sangue humano contêm sangue,
fleuma, bílis amarela e bílis preta; esses elementos constituem a natureza do
corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se
goza...”.
Um
dos aspectos mais fascinantes do esplendor grego é o fato de que a busca da razão
não abafou o imemorial fascínio pelo divino, pelo mítico. É possível encontrar
vestígios desse passado, que interliga sagrado e profano, também no famoso “Sermão”, atribuído a Hipócrates
(460-375 a.C.), onde a questão do segredo médico assume posição esotérica e
sagrada, como na confissão religiosa.
Essa
inovadora abordagem estava presente também em Eurípedes, que não admitia doença
de origem divina, mas do pensamento do homem ao recusar a razão frente à
violência das paixões. De certa forma, Eurípedes ao admitir que ninguém é
voluntariamente mau e entendendo o pecado como erro, se aproximou das idéias de
Sócrates, que defendeu a premissa de o pecado estar interligado à ignorância.
Logo, nessa linha, Eurípedes e Sócrates admitiram a educação como a alternativa
para evitar o pecado, o erro.
O
herói grego continuou associado à cura de doenças e malefícios. O senso comum
compreendia grande número de deuses e deusas possuindo, entre os principais
atributos, o dom de sarar as doenças e as feridas de guerra, como Platão
magistralmente assinalou no República:
"Por conseguinte, afirmaremos que também Asclépio sabia isto, e que,
para os que gozam de saúde física, graças à sua natureza e à sua dieta, mas têm
qualquer doença localizada, para os que têm essa constituição, ensinou a
Medicina, que expulsa as suas enfermidades por meio de remédios e incisões,
prescrevendo-lhes a dieta a que estão habituados, a fim de não prejudicarem os
negócios políticos".
Na
mesma esteira, a histórica construção para que a doença seja desvinculada do
pecado continua em curso, interferindo para que a Medicina e as ideias e
crenças religiosas mantenham claro nível de conflito.