João
Bosco Botelho
Em
contraponto à cura mágica da doença entendida como forma de castigo aos
pecadores, as práticas médicas laicas constroem e reconstroem a busca da
materialidade da doença. Desde o século 4 a.C., na Escola Medica de Cós, sob a liderança
de Hipócrates, a teoria dos Quatros Humores, idealizada por Políbio, iniciou o
processo para retirar dos deuses e deusas a primazia da saúde e da doença. Por
essa razão, usando a linguagem de Bachelard, eu a entendo como primeiro corte epistemológico na busca da
materialidade da doença.
A associação entre as idéias da Escola
Médica de Cós e a filosofia jônica possibilitou avanço gigantesco — a Medicina
como Paideia — estabelecendo a ponte que ligaria, para sempre, a busca laica da
causa das doenças.
A
Medicina como Paideia abriu o caminho ao avanço da medicina oriunda das
universidades. É possível compor cinco alicerces fundamentais da physis, da estrutura teórica jônica, embutidos
na Medicina como Paideia:
—
Como universalidade e individualidade: todas as coisas têm a sua physis própria, os astros, os ventos, as
águas, os medicamentos, o homem com as suas partes e as doenças (Das Epidemias, distingue: ”...a physis comum de todas as coisas, da
physis própria de cada coisa”;
— Como
princípio: a physis é o princípio (arkhé) de tudo que existe (Sobre os Lugares e o Homem, lê-se: “A physis do corpo é o princípio da razão da
Medicina”).
—
Como harmonia: na sua aparência e na sua dinâmica a physis é harmoniosa; é a ordem que se realiza com beleza. A
natureza é harmoniosa e produz harmonia;
—
Como racionalidade: a natureza é racional em si mesma. Por esta razão existe
uma fisiologia; a ciência na qual o logos
do homem se harmoniza diretamente com os logos
da natureza;
—
Como divindade: a physis é em si
mesma divina.
Esse
é um dos aspectos mais interessantes na Medicina, na Grécia, do século 4 a.C.:
mesmo sem ataques aos deuses protetores da saúde, em especial, ao deus
Asclépio, os médicos de Cós e os filósofos estabeleceram elos duradouros entre
o binômio saúde-doença com a natureza circundante, como está presente na introdução
do manuscrito Dos Ventos, Águas e Regiões,
de autor desconhecido, escrito no século 4 a.C. (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris.
Labe Éditeur. 1855. p. 1050):
“Quem quiser aprender bem a arte de médico
deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e
os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à
sua essência especificada e quanto às suas mudanças. Quando um médico chegar a
uma cidade desconhecida, deve determinar, antes de mais nada o que se refere às
águas e à qualidade do solo, pois a mudança nas doenças do homem, está relacionada
com a mudança do clima”.
Não
é demais repetir que Platão (Político,
296a-b-c) sistematizou o pensamento corrente da época ao descrever a nova
postura do médico e a do político. Ambos, baseados nos respectivos saberes,
deveriam, sempre que necessário, intervir na sociedade para promover melhoras.