Tenório Telles
O médico grego
Hipócrates cunhou uma das frases mais expressivas sobre o sentido da existência
e o caráter efêmero de todas as coisas sob o sol: “A vida é curta, mas a arte é
longa, e para dominar a arte e acrescentar-lhe ao patrimônio humano alguma
coisa, é necessário, antes de tudo, que a brevidade da vida se multiplique no
trabalho, se enriqueça no amor, se ilumine no ideal e se tempere na luta”.
A frase de Hipócrates,
considerado o pai da medicina, surgiu-me em meio a uma experiência dolorosa,
vivida esta semana: a morte da professora Artemis Veiga. Recebi a notícia
quando partia para um compromisso em Careiro Castanho. A manhã estava bela e
clara. Pedi ao condutor que me levasse à funerária para o último encontro com
aquela que tanto enriqueceu de sabedoria e beleza a minha vida. Difícil vê-la
tão frágil e indefesa – ela que tanto amara os livros, a poesia e a arte. Junto
ao seu corpo, um filme me passou pela mente: uma sequência de fotogramas de
vários momentos – lembranças das aulas na Universidade, das conversas sobre
seus autores prediletos, literatura policial, pintura impressionista – seu
fascínio por Monet, Renoir... Os cafés na companhia de sua mãe, dona Cecília.
Aprendi com ela a ler poesia, a sentir a vibração das palavras, a beleza das
formas. As tardes em sua casa eram mágicas: os poemas ditos em sua voz grave. A
audição de músicas que a encantavam e que encantaram minha vida.
Professora da
Universidade Federal do Amazonas, Artemis foi uma profissional rigorosa e
apaixonada pelo seu trabalho. Suas aulas de literatura eram momentos de
encantamento. Com o brilho de sua inteligência, seu humor, transformava esses
encontros em descobertas sobre a magia das palavras, o caráter
plurissignificativo da linguagem. Enfim, a literatura... esse mundo
multifacetado como um calidoscópio e, ao mesmo tempo, revelação – da vida, da
condição humana e da força criativa dos artistas. Artemis Veiga ensinou aos
seus alunos um jeito diferente de olhar o mundo e de ler os textos. Lembro-me
da maneira como ia desvelando as palavras dos poemas – como se fosse tirando os
véus e desnudando a alma encarnada nos vocábulos, nas frases. Aprendi, com suas
lições, que ler é um exercício de mergulho – e quanto mais profundamente
mergulharmos, mais seremos capazes de apreciar a riqueza e a verdade essencial
de uma obra, de uma música, de uma pintura. Por tudo isso – pelo seu
magistério, pela sua sabedoria, pelas sementes que plantou no nosso ser, pelo
desassossego que despertou em todos nós – ela sobrevive em nossas lembranças e
no que somos. Sem a presença dela em minha vida e formação – muito de mim não
teria sido.
Outro aspecto da
existência de Artemis Veiga que me despertou
respeito foi a capacidade de renúncia e o cuidado que tinha com sua mãe.
Dona Cecília era uma leitora compulsiva e uma mulher ousada e de um humor
inquebrantável. Mesmo quando já estava debilitada pela idade e pela doença não
perdeu a verve. Artemis a acompanhou estoicamente na sua longa travessia. Mas
não foi só isso. Poucos sabem que foi uma poetisa delicada e ciosa de seu
trabalho criativo. Talvez por sua timidez e autoexigência não publicou seus
poemas. Espero que sua família, especialmente seu irmão, o escritor Frederico
Veiga, considere a possibilidade de reuni-los em livro. Estas palavras escritas
com o coração são para eternizar minha gratidão por essa professora especial e
celebrar a sua memória. Este “textículo” [seus alunos sabem do que se trata!],
portanto, é um testemunho de sua passagem por este mundo tão precário e também
um registro de seu legado. Artemis Veiga multiplicou a vida, que é breve, no
seu trabalho e a temperou na luta.
Nota: Artemis Veiga
nasceu no dia 30 de julho de 1946 e faleceu no último dia 28 de abril.
Quase
toada
(para
um menino-muito-meu-amigo)
Artemis Veiga
Creio
em ti, menino-vadio
e
no teu silêncio puro
só
quebrado
pelo
pranto sem lágrimas
contido
num único soluço
que
tua voz não realiza...
Creio
em ti, menino-grande
e
nos teus sonhos encantados
que
acalantam
segredos
de coisas
eternas
nas
curvas turvas
da
madrugada...
Creio
em ti, menino-noturno
e
no teu silêncio grave
machucado
por
presenças impossíveis
que
mastigam
solidões
gêmeas
entre
gritos estrangulados...
Creio
em ti, menino-trazverso
e
nas tuas tramas
claras
e cheias
de
palavras perfeitas
urdidas
no
riso matreiro
e
no hálito de noite
que
te inaugura
em
azul-grávido
de
certezas.
(Publicado na antologia Marupiara – novos poetas do Amazonas, em 1988).