Tenório Telles
Os homens mais importantes
de um país não são os que vivem enredados no poder, nem aqueles que acreditam
que acumular tesouros é a finalidade da existência. Os seres humanos mais
importantes são os que contribuem para o enriquecimento da sociedade. Falo
especialmente dos que trabalham para tornar o convívio humano mais solidário,
generoso e cidadão. Nessa categoria de construtores sociais, incluem-se os
escritores, os pensadores, os estadistas, os profetas, os artistas de verdade,
os editores e os livreiros.
Editores e livreiros cumprem
na história uma função civilizadora. Desde os tempos dos escribas ajudam a
preservar a cultura – produzindo livros e fazendo-os circular, chegar aos
leitores. Trata-se de gente perigosa, por isso têm sido alvo de perseguições,
calúnias e não foram poucos os que pagaram a ousadia com a vida. A história de
Monteiro Lobato, José Olympio e Joel Silveira não deixa dúvidas quanto a isso.
Fiz esse arrodeio para
emoldurar a história que vou contar. É uma história imbricada com a minha
caminhada e a de muita gente em Manaus. Aliás, é parte da construção cultural
da cidade. Como falei, os livreiros são agentes a serviço da cultura e da
liberdade. A trajetória da Livraria Maíra e do escritor e ator Dori Carvalho é
afirmativa desse caráter civilizador e de resistência política. Numa época
perigosa – em que a ditadura militar assombrava o país – Dori criou sua casa de
livros. Era na verdade uma pequena república livre, onde os jovens, os
intelectuais, os artistas e os apaixonados pelos livros encontravam acolhida e
interlocutores para as suas inquietações e sonhos.
A descoberta da Maíra foi
uma experiência transformadora na minha história. Visitá-la era uma viagem –
passava horas percorrendo suas prateleiras: dialogando com autores e livros
silenciados, alternativos, alguns difamados pelos escrevinhadores a serviço da
ditadura. Foi lá que fiz as descobertas que me abriram as portas do mundo e,
assim, pude vê-lo com os olhos da consciência. Foi lá que conversei pela
primeira vez com Artaud, Rimbaud, Baudelaire, Büchner, Whitman, com meu amado
Jules Laforgue, Pessoa, Eliot, Neruda, Caio Fernando Abreu, Cacaso, Paulo
Leminski... Lá flertei com os anarquistas russos e descobri os pensadores que
me ajudaram a forjar a rota da minha navegação pelos mares da vida: Benjamin,
Gramsci, Thoreau, Emerson, Marx, Santo Agostinho e aquele que me ensinou que o
paraíso pode ser aqui e que não é pecado tentar ser feliz – Epicuro, meu
filósofo e oráculo.
Admirava Dori Carvalho a
distância, com devoção e um misto de respeito e inveja. Jovenzinho, tímido e
inseguro não ousava me aproximar daquele que simbolizava a coragem, o
esclarecimento e o construtor de um espaço de ideias. Invejava sua altivez,
juventude e beleza. Quando falava um poema em público, com sua voz
inconfundível – parecia mais um bardo grego –, então, a humilhação era
completa. Para muitos rapazes daquele tempo, Dori era a personificação do que
desejávamos ser. Sem falar no fascínio que exercia sobre as mulheres.
Dori era também um
conselheiro de leitura. Testemunhei conversas suas com leitores sobre obras e
escritores fundamentais. Comprei vários livros a partir dessas indicações. Como
bom leitor, era inevitável sua inserção no universo da escrita. Estreou, em 1987,
com Desencontro das águas, um dos livros mais expressivos da literatura
brasileira pós-64. Contundente e visceral, foi um dos finalistas do prêmio Casa
de las Américas. Seu segundo trabalho, Paixão e fúria, distingue-se pela
intensidade humana e tom lírico dos versos.
Outra margem de sua vida é o
teatro. Destacou-se como professor e ator. Participou de montagens históricas
da cena teatral amazonense, consagrando-se como um dos atores mais preparados
tecnicamente. O que sobressai, entretanto, no seu itinerário artístico é seu
comprometimento com as boas causas – com a liberdade, com a dignidade e com o
ideal de transformação do mundo. Num tempo como este, solapado pela indiferença
e pelo egoísmo, esses valores podem parecer excessivos e retrógrados.
Neste tempo de morte e
banalidade da estupidez e da maldade, Dori Carvalho manteve-se vivo, sem perder
a capacidade de se indignar diante dos descaminhos do mundo. Esse estado de
desassossego funda o seu ser e a sua poesia, como se depreende da leitura de seu
belo poema “O menino e os poetas”:
Por isso, ando com esse
sentimento do mundo
que tanto me faz sofrer e
faz sonhar
por isso, o silêncio e a
palavra
por isso, essa dureza e essa
ternura
por isso, sede de liberdade
e as canções desesperadas
por isso, carrego em meu
coração um pouco de poesia
por isso, levo em minha boca
um copo de pasárgada
que tanto me faz amar e faz
viver.
Filho de São Joaquim da
Barra, Dori renasceu no Amazonas e deu a este chão um legado significativo.
Ajudou na construção de nosso processo cultural e escreveu uma das mais belas
páginas da história do livro na Amazônia. Como o tempo passa e a poeira dos
anos recobre a memória, escrevo este testemunho para o conhecimento das novas
gerações e para que seu legado não seja esquecido. Este texto é um gesto de
gratidão pelo seu trabalho e também um ato de reconhecimento pela sua história.
Que saiba que não foram em vão seus esforços e sua luta a favor da arte, dos
livros e da dignidade humana.
(Dori Carvalho
completou 60 anos no último dia 11 de junho)