Inácio Oliveira
Eu estava em Bósdio outra
vez, a cidade permanecia exatamente igual como no dia em que eu partira. O rio
que outra vez recuava deixando ver as pedras, as ruas esburacadas e os prédios
coloniais que desafiavam o tempo; tudo permanecia igual como numa fotografia. O
lento verão se arrastava pelas ruas. Do alto da praça dava pra ver o lago ao pé
da serra, fiquei pensando que para aquela paisagem faltava apenas uma moldura.
Sentei-me, acendi um cigarro e fiquei fumando, procurando não pensar na minha
vida.
Um rapaz passou por mim,
me encarou por um segundo, hesitou e veio falar comigo.
Você não é o Inácio
Oliveira, o escritor?
Sim, acho que sim.
Cara, eu adoro seus
livros.
Obrigado.
Ele parecia embaraçado,
mas havia admiração em seu embaraço. Então fiz pose de escritor para ele. Ele
disse que havia um coincidência incrível naquele encontro, que ele morava na
mesma casa em que eu morei na minha juventude. Disse também que a coincidência
era maior ainda porque ele mesmo era escritor, ou melhor, era um aprendiz de
escritor. Mas disse aprendiz com um certo orgulho que eu achei comovente.
Você gostaria de rever a
casa, ver se ela continua como antes? Garanto que pouca coisa mudou.
Não sei se gostaria de
voltar lá depois de tanto tempo.
Ele insistiu, disse que
me ofereceria uma bebida. Fazia tanto tempo que ninguém me reconhecia como
escritor que a minha vaidade foi maior que a minha vontade de ficar sozinho,
então aceitei o convite. Saímos caminhando pela rua estreita. Era quase noite,
as luzes foram se acendendo uma a uma iluminando o casario. Paramos enfrente a
casa onde eu havia nascido. Na minha memória a casa não era tão antiga, nem havia
essas rachaduras que sobem até o teto.
Entre. Você deve ter
muitas lembranças daqui, não?
Lembranças, lembranças.
Sim. Um estoque delas.
O rapaz me ofereceu uma
taça de Quinta do Morgado. Eu detestava aquele vinho barato, mas ele imaginava
que isso me agradaria, afinal, em meus livros, os personagens estão sempre bebendo.
Para não o frustrar saboreei o vinho demonstrando que era prazer a repugnância
que eu sentia.
Então, sobre o que você
escreve?
Rabisco alguns versos,
escrevo pensamentos. Gosto de escrever crônicas também, mas aqui não temos muito
assunto, nada acontece.
Mas este é um tema
maravilhoso, o tema da cidade onde nada acontece. Você devia escrever sobre
isso.
Não sei se é bom o que eu
escrevo, não sei se sou um bom escritor.
É claro que você não é um
bom escritor, você está apenas começando. É bom que seja ruim.
Uma moça ruiva entrou na
sala. Usava um short jeans rasgado e uma blusa à moda de espartilho que sufocava
os seios. Ela disse olá e eu pude ver um piercing na sua língua, virou-se para
beijar o rapaz ao meu lado e vi três borboletas tatuadas nas suas costas. O
doce do vinho e a nostalgia daquela casa me fizeram pensar em um antigo amor.
Ele me apresentou sua
namorada, mas ela não pareceu impressionada de conhecer um escritor. Apenas
disse.
Você é o segundo escritor
que eu conheço.
Eu acompanhei o casal até
um barzinho que ficava no cais. Eles tinham a urgência de viver que há naqueles
que são jovens. A brisa que vinha do rio brincava com os cabelos da moça ruiva.
De repente, vê-los junto me encheu de melancolia, pois percebi o quanto aquela
cena era frágil. Deu vontade de dizer para a moça ruiva. Esse rapaz vai partir
seu coração, mas isso era um clichê e um escritor como eu jamais diria um
clichê como esse. Deu vontade de dizer também para o rapaz. Vá embora daqui,
não perca tempo com esta cidade, ela nada poderá lhe oferecer. Mas eu não havia
ido a Bósdio dar conselhos para ninguém.