João Bosco Botelho
A existência de pessoas portadoras do dom de
curar, fora das construções da ciência, rejeitando a morte e empurrando os
limites da vida, tem acompanhado sociedades-culturas desde tempos ancestrais,
entre ricos e pobres, numa dimensão e repetição que não podem ser atribuídas
somente ao ordenamento social.
A maior parte da comunicação religiosa entre
curador e suplicante se realiza em torno da regra binária do prêmio-castigo,
onde a divindade principal recompensa os obedientes com a bonança e pune os
faltosos com a dor eterna, na vida após a morte. O aliado do divino dominante
que cura a doença e o infortúnio representa a própria divindade. Ao contrário,
o curador não alinhado, mesmo que sare e adivinhe com a mesma competência, é
impedido do renascimento bondoso.
A maior clareza dessas associações ficou mais
transparente a partir da leitura da escrita cuneiforme das tábuas de argila,
encontradas nos sítios arqueológicos assírios e babilônicos, no intrigante
sinônimo das palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento. De
modo semelhante, o sacerdote, médico, adivinho e o escriba receberam o mesmo
nome.
A posse do dom de curar oferece mais poder ao
detentor. Coloca-o em destaque na comunidade porque cura a doença ou o
infortúnio. É frequente encontrá-lo na História como intermediário das
divindades. Na prática, pode utilizar esse enorme poder político como forma de
aglutinar ou dissolver partes do grupo.
Parece ser no conflito social que se percebe
melhor a força explícita dos curadores. Pode aparecer quando o poder dominante
tenta impor outra abordagem escatológica e eliminar as heteropráxis, como etapa
indispensável da substituição cultural. O deus babilônico Baal, cujo culto era
difundido desde as regiões sírias até o Egito, foi combatido tenazmente pelos
profetas do Antigo Testamento, para, enfim, ser humanizado e destituído de
todos os atributos divinos por Euzébio.
O destaque social curador pode ser utilizado
como instrumento do poder dominador para convencer quanto à utilidade do
projeto político, a mudança do antigo pelo mais recente. Contudo, deve trazer a
mensagem de esperança requerida pelos anseios coletivos mais atuais. A sedução
exercida pela nova proposta está inserida no surgimento de imagens metafóricas
de novos curadores que defendem outros conceitos de salvação pessoal e
coletiva. Dessa forma, os novos curadores garantem a perenidade das promessas
de vida mais fácil.
Como exemplo dessa ruptura entre curadores
aliados e inimigos, é possível citar Astarte, mencionada no Pentateuco como
deusa da vegetação e da sexualidade, cultuada na Mesopotâmia e no Oriente
Médio, que acabou como símbolo do infortúnio e da doença porque não era aliada
do povo de Israel. Do mesmo modo, em diferentes períodos, os demônios bíblicos,
retratados como símbolos de falsos curadores, participaram do movimento de
resistência ao poder de Israel.