Kissyan
Castro
Entrar na intimidade de
um artista sem divisá-la de sua própria arte é como estar às apalpadelas em
intrincado labirinto, sem contar com a ajuda de um fauno. Sobretudo a
intimidade de poetas da esteira de um Maranhão Sobrinho. Pois, como bem nos
acautela Fernando Pessoa, esses demiurgos da lira costumam celebrar, também, as
suas “dores fingidas”. No entanto, valendo-me do que a despeito disso escreveu
o poeta Floriano Martins, em Escritura
Conquistada, de que “os poetas estamos todos em cada um de nossos versos”,
além do relato de testemunhas auriculares, apoiado por documentos oficiais, e
do que se pode depreender do que nos deixou em prosa e verso o próprio Maranhão
Sobrinho, arrisco-me a falar, ainda que minimamente, desta que talvez tenha
sido o primeiro amor do nosso poeta maior. Refiro-me a Honorina Fernandes de
Miranda.
Com o passamento do
pai, o Capitão Honório Fernandes de Miranda, e vendo abalada a estrutura
econômica da família, Manoel Raimundo Nonato de Miranda resolve deixar
Cururupu, sua gleba natal, para vir exercer o magistério na então próspera Vila
de Santa Cruz da Barra do Corda. A mãe, Dona Rita Maria da Silva Miranda,
recusa-se a acompanhá-lo, mas recomenda-lhe a irmã, a pequena Honorina
Fernandes de Miranda, que, mesmo tenra, manifestava disposição e vivacidade
incomuns, podendo muito bem auxiliá-lo em suas atividades.
Maranhão Sobrinho fora
seu mais obstinado aluno, e não escapou às suas recorrentes traquinagens,
chegando a botar pimenta moída no seu “torrado”. Hábil educador, Raimundo
Nonato conseguiu vislumbrar, por trás da excentricidade peráltica do pequeno
Zeca, o gênio invulgar que se tornaria mais tarde. Além da instrução basilar,
Maranhão Sobrinho recebeu de seu mestre admiração e sincera amizade. Quantas
vezes o poeta não deve ter-lhe visitado para tirar alguma dúvida retida durante
a aula formal, ou para ouvir-lhe as exóticas histórias, folhear os livros de
sua biblioteca particular, ou simplesmente – e por que não? – para contemplar a
jovem Honorina, por quem cedo passou a nutrir especial afeto, e cuja formosura entusiasticamente
exalta num poema publicado no jornal cordino O Porvir, em 21 de fevereiro de 1897, época em que supostamente
namoravam:
Vês? Teus
seios gentis por entre as rendas
Da perfumosa
e cândida mantilha,
Cantam
baladas e soletram lendas.
Teu rosto
tem a palidez de Ofélia,
O perfume
das virgens de Sevilha
E a mágica
expressão do de Cordélia!
O saudoso escritor
Antonio de Oliveira, na separata nº 82 da Revista das Academias de Letras, de
1976, foi quem primeiro trouxe à tona o assunto, ao referir-se a uma entrevista
com Olímpio Fialho, amigo de infância de Maranhão Sobrinho, o qual lhe segredou
que o autor de Papéis Velhos..., aos
18 anos de idade, tivera uma namorada chamada Honorina de Miranda, a Noca, como
era comumente conhecida. Moça que, a julgar pela caligrafia impecável com que
assinava os documentos oficiais, possuía esmerada educação.
Eu mesmo não tinha
sequer noção do quanto significou essa primeira experiência amorosa para o aedo
barra-cordense, até encontrar, em O
Guarany, outro antigo periódico cordino, como por acaso, um texto em prosa
do poeta, uma crônica que denuncia um Maranhão Sobrinho romântico, a desaguar o
coração sem o menor desvelo. Transcrevo aqui um trecho:
Há lá para as bandas da Rua Formosa[1],
célebre, muito célebre no canhenho do humilde rabiscador modelo destas linhas,
uma celestial senhorita que me cativou docemente o coração. É um mimo da
natureza; é a verdadeira coroa da criação...
Refere-se esta
“celestial senhorita” a Honorina de Miranda? Provavelmente. Tanto que mais
adiante ele indaga:
Conheces a minha bela?
Maranhão Sobrinho
emitiu essa crônica ao jornal enquanto passava alguns dias com parentes,
provavelmente em Carolina ou Riachão, cidades onde o clã Maranhão possuía
presença expressiva. E a julgar pelo temperamento irrequieto do poeta, não é de
se estranhar sua tendência andarilha de viajor. No entanto, sua aventura
amorosa inaugural chegou ao fim quando numa dessas viagens teve um sonho, não
um sonho qualquer, fruto do enfado e ansiedades da vida, mas um sonho
premonitório, cujo relato do cumprimento Maranhão Sobrinho deixa registrado em
versos, na Revista Elegante, em 23 de
março de 1899:
Parti... e
tu ficaste! Um só momento
Não pude me
esquecer de ti, amada!
Do fundo da
minh’alma angustiada
Fugira todo
o meu contentamento.
E andei...
mas tendo em ti o pensamento,
Nunca
olvidei-te. Em meio da jornada,
Sonhei
qu’esta minh’alma apaixonada
Tinhas
lançado em tredo esquecimento!
Voltei
então... julguei achar-te a espera
Minha
cantando a doce primavera
Do nosso
amor, festiva, palpitante...
Cheguei,
enfim... Ó dor! Ó sentimento!
Como sonhei
– achei o esquecimento...
E sorrias
nos braços d’outro amante!
Quem teria sido esse
“outro amante” em cujos braços o poeta flagrou sua amada Honorina? Em minhas
pesquisas, acabei descobrindo que se tratava de Políbio Martins Jorge, filho do
capitão Caetano Martins Jorge e Ana Martins da Cunha, influente família nesta
cidade. Esse pérfido ato teria deixado profundas e indeléveis marcas em sua
alma de poeta.
Este assunto seria
irrelevante não fossem as implicações que viriam a ter tanto na poesia de
Maranhão Sobrinho, quanto, talvez, nas motivações que lhe fizeram deixar Barra
do Corda. A propósito, o que teria mesmo motivado o nosso aedo a deixar sua
família, amigos, seu torrão natal, para nunca mais voltar a vê-los? A versão
oficial reza que Barra do Corda tornara-se pequena demais para ele, e, à
maneira de Rimbaud, exaurira todas as possibilidades de aquisição do conhecimento
que sua aldeia poderia oferecer. Concordo. Mas parece uma versão cômoda demais.
Teria sido apenas isso? Não buscava o nosso poeta destaque, posição social?
Não. Ou não teria abandonado o curso normal em São Luís só por se ter
indisposto com um dos professores. Ou teria procurado amparo em outra entidade
afim, o que não fez. O que o levou daqui não teria sido a ambição por “metais
preciosos”? Definitivamente, não. Pois, como nos diz Antônio Lobo em Os Novos Atenienses, Maranhão Sobrinho
“possuía pelas coisas materiais da vida a mais soberba das indiferenças”.
Poderíamos atribuir o seu êxodo talvez a uma frustração política, por causa da
prevalescência do republicanismo local? Ou mesmo por suas inclinações
nomadistas, próprias do seu temperamento erradio? Vale ressaltar que O Guarany, de 26 de fevereiro de 1899,
trazia estampada na primeira página a seguinte manchete: “O Fim do Mundo em 13
de Novembro deste Ano”. Teria esta charlatanesca mensagem fustigado o nosso
poeta, que para não enfrentar o Juízo Final por aqui mesmo, saíra às pressas
apenas três meses antes? Seria trágico,
não fosse cômico. Por fim, não poderíamos atrelar a essas hipóteses também a
sua frustração amorosa?
Creio que nos
esquecemos de relacionar dois detalhes importantes: a mudança de Maranhão
Sobrinho para São Luís, em 15 de agosto de 1899, com o casamento de Políbio
Martins Jorge e Honorina Fernandes de Miranda, ocorrido em 27 de maio de 1899.
Terá sido mera coincidência o nosso aedo ter deixado Barra do Corda,
definitivamente, a menos de três meses do casamento do seu primeiro e grande amor?
Junte a isso a tendência escapista do poeta e já não teremos uma hipótese que
se possa descartar.
Dizem os antigos que
jamais nos esquecemos do primeiro encontro, do primeiro beijo, da primeira
intimidade, enfim, do primeiro amor. Verdade
ou não, deixemos que o próprio Maranhão Sobrinho nos conte em versos a sua
experiência, num dos primeiros poemas que publicou ao chegar em São Luís:
E tu passas
mimosa,
Ó casta e
meiga flor da minha aldeia!
Gravando com
os pezinhos cor de rosa
Estrofes
raras na suave areia...
Maranhão Sobrinho de
fato não a esqueceu. Sua imagem foi sendo mistificada, e verso a verso
expurgada até a sublimação arquetípica da perfeição feminina, até que enfim estivesse
pronta para reencontrá-lo, não mais em carne e osso, e correr o risco de
perdê-la novamente, mas no âmbito do poema, onde a aguarda em sua turris
ebúrnea, “longe dos homens e das casas”, onde só há lugar para dois, onde a
eternidade é descartável, e apenas “dois brancos pares de travessas asas”
ruflam uníssonas na imensidão azul do Sonho.