Inácio
Oliveira
As
cortinas se fecham e a plateia aplaude, sem entusiasmo. É o fim da linha, eu
sei. Tudo porque Joana insistiu que encenássemos uma peça do Nelson Rodrigues.
Enquanto as comédias abarrotam os teatros, nós apresentamos uma peça em que o
personagem diz que o ser humano é um fracassado, para três ou quatro pessoas na
plateia. Depois desta noite, nossa companhia irá se dissolver: alguns irão para
outras companhias, uma moça irá trabalhar na televisão, alguém fará stand up e os outros, simplesmente,
desistirão do teatro.
Restamos
Joana, Armando e eu. Armando diz que só abandonará o teatro quando fizer o
papel do Rei Lear. Ensaia todos os dias as falas do seu personagem, está pronto
para entrar em cena a qualquer momento. Olhando para seus cabelos brancos,
sentado à cabeceira da mesa, enquanto jantamos, penso que ele ficou velho com
este único propósito, o de interpretar Rei Lear. O que Armando não sabe é que
já não mais há teatro para ele abandonar. Joana e eu continuamos insistindo
porque, na verdade, já não sabemos fazer mais nada das nossas vidas.
Foi
por isso que aceitamos fazer parte do desvario daquele triste senhor. O
telefone toca e alguém diz que Dr. Herculano desejava ter uma audiência comigo.
Desculpe-me, não conheço nenhum Dr. Herculano. Mas ele conhece o senhor, admira
seu trabalho e quer lhe fazer uma proposta. Proposta? Que tipo de proposta? Ele
prefere dizer pessoalmente. Marquei o encontro com Sr. Herculano no Bar
Sebastian. Estava lá há uns quinze minutos pensando que mais uma vez alguém me
enganara. Já me preparava para ir embora quando um senhor atravessou a porta do
bar, olhou em minha direção e pareceu me reconhecer. Sentou-se à mesa comigo,
apoiando-se na bengala. Impressionou-me sua bengala esculpida de uma maneira
impecável. Tive vontade de pedir para tocá-la, mas fiquei com medo que ele me
achasse esquisito. Chamou o garçom com um gesto que era ao mesmo autoritário e
elegante. Jurei que ele fosse pedir chá, mas pediu whisky, sem gelo. Sorveu o
líquido do copo de vidro com um único gole. Suas mãos pareciam o chão de um
lugar onde nunca chove.
Quero
parabenizá-lo pelo seu trabalho, ele disse. Assisti a montagem de Dias sem Febre, de João Marcilio.
Encantou-me a forma como você manipula os elementos dispersos da trama, a
sobriedade do cenário e o uso sensato da iluminação. Devo dizer que, sem
dúvida, você é um jovem talentoso. Eu sabia que tudo aquilo era mentira, mas me
agradavam suas palavras e eu gostei do tom rouco e cansado da sua voz, como se
tudo que ele dissesse tivesse o peso de uma incontestável verdade. Fiz um gesto
que pretendia indicar modéstia e deixei que ele continuasse falando. A razão do
nosso encontro é que eu tenho uma peça e quero que ela seja encenada.
Um
dramaturgo tardio, eu pensei. Veja bem, senhor, as coisas no teatro são
difíceis. Conseguir espaço, público, tudo isso é muito difícil. Além disso
minha companhia de teatro se desfez, restamos três pessoas apenas. Eu estou
disposto a arcar com todas as despesas, pago o que for preciso. Bem, nesse
caso, as coisas mudam. Quantos atos têm a sua peça? Atos? Não, não há atos.
Certo, partes. Quantas partes sua peça têm? Não se trata de partes, é só uma
cena. Então o senhor me dê o texto escrito e veremos os custos para encená-la.
Não é algo que eu, propriamente, tenha escrito. É algo banal, meu caro. Uma
cena que poderia acontecer na mesa de um bar como este, ou na rua, com qualquer
pessoa, mas que para mim tem um sentido muito particular. Pagarei o quanto você
achar razoável, mas preciso que a cena seja exatamente como vou lhe dizer.
O
cenário é o de uma praça em uma cidade do interior. Há um playground e um pipoqueiro. Algumas árvores, e as folhas caem dando
à praça um aspecto de abandono. Passa um garoto em um triciclo e em seguida um
senhor com um cão. Em um banco estão sentados um rapaz e uma moça. O rapaz
veste um camisa polo azul, uma calça brim de cor marrom e um sapato preto sem
cadarços. A moça usa um vestido florido, curto, porém discreto e possui nos
cabelos um laço em forma de borboleta. Entre eles se dá o seguinte diálogo.
A
MOÇA – Se você pedir para eu ficar, eu fico.
(O
rapaz fica em silêncio, enquanto passa uma mulher empurrando um carrinho de
bebê).
A
MOÇA – Basta uma palavra sua...
O
RAPAZ – Fique, tudo o que eu quero é que você fique.
É
só isso, pensei em perguntar, mas percebi que minha pergunta soaria estúpida. Quero
que você me dê a ilusão de uma grande obra de arte, disse-me, porque só a arte
é perdurável. Lembrei do teatro intimista de Strindberg, mas preferi não
mencionar o dramaturgo sueco. É uma cena interessante, disse-lhe. Mas, senhor,
com todo o respeito, quem iria ao teatro assistir apenas a uma cena? Além
disso, ninguém nesta cidade compreenderia o simbolismo das árvores com as
folhas caindo e a metáfora do tempo no senhor que passa com o cão e na mulher
empurrando o carinho de bebê. Ele riu como se caçoasse de mim. Você não
entendeu, meu jovem, está peça não é para o público, apenas eu vou assisti-la e
ninguém mais. Colocou algumas notas sobre a mesa e disse. Espero que isto sirva
como adiantamento, me procure quando tiver a data de estreia da minha peça.
Comecei
a preparar o cenário naquela tarde. Aluguei um galpão que havia servido como
teatro há alguns anos, mas agora estava abandonado. Foi difícil colocar três
árvores no palco e fazer com que suas folhas caíssem no momento exato da cena,
fora isso, foi fácil recriar uma praça de interior. Depois de pronto ficou até
bonito, nostálgico. Convidei dois jovens da escola de teatro para fazerem a
moça e o rapaz. Precisava, agora, de um pipoqueiro, de um cão, de um garoto com
um triciclo e um carrinho de bebê. Joana seria a mulher que empurra o carrinho
e Armando, o senhor que passa com cão. Pobres figurantes, uma atriz que já
havia sido Medeia e um ator que deseja ser Rei Lear. Ninguém entendeu porque eu
queria montar uma cena de cinco de minutos para uma única pessoa. Eu, para
justificar a mim mesmo, dizia, dinheiro, é só dinheiro.
No
dia de estreia o senhor Herculano apareceu, pontualmente, no horário marcado.
Vestido em traje de gala como se fosse assistir a uma ópera. Quando as cortinas
se abriram eu senti a mesma emoção de quando, pela primeira vez, uma peça minha
estreou em um teatro lotado. Olhei para a plateia e vi o único espectador, um
octogenário muito concentrado, à espera do grande espetáculo. A iluminação
procura imitar o pôr-do-sol. Na última hora decidi não colocar música nenhuma
para não tornar a cena ainda mais vulgar. As folhas fictícias das árvores caem
lentamente, em silêncio. O pipoqueiro faz um breve giro com seu carrinho no
canto esquerdo do cenário. Há um playground
recém-abandonado, como se as crianças tivessem deixado de brincar ainda há
pouco. Sentados no banco, o rapaz e a moça são duas sombras semi-iluminadas;
aos pouco uma luz incide sobre eles revelando seus rostos. Eles estão se
olhando fixamente como se procurassem ver a imagem de si mesmos nos olhos do
outro. Um garoto atravessa o palco fazendo manobras no triciclo, dando à cena
um tom que não pretendia ser cômico. Armando caminha puxando um cão pela
coleira, tem a postura ereta e a expressão aristocrática de um lorde; neste
momento ele me parece um canastrão. A luz se concentra sobre o casal sentado no
banco. Ela diz – Se você pedir para eu ficar eu fico.
Olho
para plateia e percebo que o senhor Herculano se sobressalta ao ouvir a voz da
garota. O rapaz, sempre em silêncio, adquire uma expressão pensativa,
ponderando sobre o futuro. Joana passa empurrando um carrinho de bebê; parece
uma mãe frustrada, desgostosa da vida. Novamente a moça. Basta uma palavra sua.
O rapaz olha para ela e diz, empostando a voz. Fique, tudo o que eu quero é que
você fique. A cortinas se fecham, ninguém aplaude. O senhor Herculano está
sozinho na plateia, vejo ele chorando, mas ninguém se aproxima.