João
Bosco Botelho
O
processo da cristianização de Roma, durante o reinado do Constantino e após,
fruto do enfraquecimento das fronteiras romanas, pelas invasões dos visigodos,
introduziu mudanças no sistema mercantil-escravista para o feudal e em
conceitos éticos e morais, especialmente, nos da prática médica. Nesse processo
complexo, a Medicina se distanciou dos conceitos gregos jônicos da físis e se
aproximou da doença como mal, entendido como castigo de Deus. Sem pretender
simplificar, o tratamento mais importante para a doença como mal, seria a força
de Deus, Jesus Cristo ou a dos santos protetores, promovendo a cura por meio do
milagre.
É
possível compreender essa abordagem cristã nos conceitos teóricos da ética e da
moral, também nas práticas médicas, como espécie de regressão às conquistas
greco-romanas, que também iria se materializar na organização urbana, no
medievo cristão europeu. As administrações das cidades descuidaram-se com a
higiene pessoal, traçados das ruas, abastecimento de água potável, enterramento
dos corpos nos limites urbanos e esgoto sanitário.
Com
o fechamento das escolas de Medicina nos moldes greco-romanos, no final do
século 5, as práticas médicas se aproximaram das abadias e mosteiros, onde
padres e freiras prestaram assistência aos doentes sob a égide da ética e da
moral cristã.
Nesse
período, no interior das abadias e conventos, distante das recomendações
hipocráticas, os padres que exerciam a Medicina provocaram tantos conflitos,
motivados pela má prática, causando sequelas e mortes, que as autoridades
cristãs, nos Concílios de Rems (1131) e de Roma (1139) proibiram que os
religiosos exercessem a Medicina fora das abadias e mosteiros.
Ao
mesmo tempo, os grandes teóricos do cristianismo como Abelardo, Bernard de
Chartre, Tomás de Aquino, entre outros, iniciam o processo de resgate
doutrinário das obras de Platão e Aristóteles, obrigando novas leituras da
ética médica.
No
século 13, tentando vencer as resistências eclesiásticas, Jean Pitard,
cirurgião-barbeiro, funda a Confraria dos Cirurgiões, sob a guarda de São Cosme
e São Damião, introduz normas éticas aos cirurgiões-barbeiros e roupas
diferenciadas que os distinguiriam dos outros que permanecem contrários ao novo
código ético.
Do
outro lado, esses núcleos médicos em algumas abadias e certos mosteiros,
serviram como sementes às futuras universidades que seriam criadas a partir do
século 13, em vários reinos da Europa, na alta Idade Média, quando a ética
médica passaria por novas mudanças.
As
abadias de Salerno e Montpelier, dois núcleos importantes das futuras
universidades, se distinguiriam por retomarem antigos conceitos éticos gregos
da Escola de Cós. Ambas valorizaram a base ética da Medicina, até hoje válida:
“Em primeiro lugar, não façam mal”.
As
fricções sociais e outros fatores econômicos e políticos abriram as portas para
o Renascimento europeu que marcaria novo tempo na Europa, interferindo
diretamente na ética médica oriunda do medievo: publicação mecanizada dos
livros, ruptura com as interdições eclesiásticas e dissecção pública de corpos
humanos, publicação dos livros “De humani corporis fabrica” de André Vesálio;
“A cirurgia”, de Ambroise Paré; “Christianismo restitutio”, de Miguel Servet,
contestando a veracidade da Trindade Cristã; “De viscerum structura”, de
Marcelo Malpighi, descrevendo o mundo somente visível sob as lentes de aumento,
iniciando o pensamento micrológico.