Amigos do Fingidor

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A Divina Comédia humana 1/6

Dante, por Doré.
Zemaria Pinto*


I

Pouco há para dizer de original sobre A Divina Comédia, o monumento que Dante Alighieri (1265-1321) ergueu no início do século XIV, em plena baixa Idade Média. Monumento eu disse? Trata-se de um lugar-comum, dos muitos que buscam representar a grande alegoria, construída com material tomado às mitologias cristã e greco-latina. Por isso, não se espante o leitor se não encontrar nestas maltraçadas nenhuma informação nova, nenhum raciocínio digno de nota.

Por outro lado, devo dizer, ecoando uma edição velhíssima, a minha primeira, que traz uma introdução de Carpeaux, que o prazer de reler A Divina Comédia, a despeito da “grave responsabilidade”, é mais que intelectual: é físico, sensual. Mexe com meus sentidos. “Pois trata-se do maior poema da literatura universal.” Ah, velho Maria, quanta irresponsabilidade ler a tradução empolada de Xavier Pinheiro, ilustrada por Doré, e, mesmo sem entender nada, ou quase nada, fruir a intensa melodia dos versos dantescos.

Não entendia porque “nel mezzo del cammin di nostra vita” virava “de nossa vida, em meio da jornada”; ou “e caddi come corpo morto cade” passava a “e tombei, como tomba corpo morto”; ou ainda “vergine madre, figlia del tuo figlio” transformava-se em “virgem Mãe, por teu Filho procriada”. Não que eu fosse fluente em italiano – nem o serei –, porém a doce língua de Fellini, Pasolini, e Antonioni soava-me estranhamente familiar. Mas nada sabia de métrica ou das leis internas do poema. E, oito lustros passados, tenho dúvidas se o sei.

Então, façamos de conta que esta é uma introdução a uma edição para jovens primeiros leitores, tal como o fora a primeira do bom Otto. Ao leitor mais exigente, mas ocioso, peço que aguarde uma ou outra provocação, semeadas ao léu. Nada que faça tremer os alicerces da grande catedral, claro. Apenas provocações aos que insistem em ler apenas o sentido literal do texto.

II

Porque o próprio Dante declarara que o seu texto tem pelo menos quatro níveis possíveis de leituras: literal ou histórica, alegórica, moral e mística. Passarei ao largo desta, pois não tenho o estofo necessário para a abordagem. Muito contribuiu aquela leitura precoce para desaparelhar-me da ideia do sagrado. Sabia-me indigno de Beatriz e tinha consciência de que todos os pecados até então cometidos – e todos os que, de boa fé, pretendia cometer – não me dariam mais que um lugar obscuro no Purgatório, no patamar dos invejosos ou no dos preguiçosos. Mas confesso que meu desejo mais recôndito era o ser condenado ao sétimo patamar, dos que se excederam na luxúria. 

Ó vós que tendes o intelecto são,
           vede a doutrina que o velame esconde
           destes versos estranhos que aqui vão!
                                   (O Inferno, IX, 61-63. Trad. Vasco Graça Moura.)

A Divina Comédia é uma floresta de símbolos, tal como a sonharia Baudelaire. Esses símbolos estão por toda parte, no poema, desde o metro decassílabo, passando pelo esquema rímico, em terça rima, até as óbvias imagens da prostituta que toma de assalto o carro divino, numa das mais interessantes passagens do Purgatório. A rapariga simboliza, claro, a própria igreja do século XIV. Mas isso tudo só é óbvio, só é claro, porque há setecentos anos se destrinça, se desenreda a obra. Vamos a nossa modesta contribuição, que certamente somará pontos para que eu me candidate também ao patamar dos soberbos, que é para onde são mandados os pretensiosos. Ou não é a pretensão uma forma de soberba?

(*) Apresentado em 25/11/2006 na Academia Amazonense de Letras, dentro do ciclo Palestras Essenciais”.
Publicado integralmente na Revista da AALn° 28, de novembro de 2010.