Amigos do Fingidor

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A Divina Comédia humana 4/6

Dante e Virgílio no Inferno, por Bouguereau.
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Zemaria Pinto

VII

Voltemos ao início da viagem. O tempo do enunciado do poema é de uma semana, começando no dia 8 de abril de 1300, o ano do Jubileu romano, estendendo-se à quinta-feira da semana seguinte. O personagem narrador, que se identifica como o próprio poeta, vê-se perdido numa selva escura, símbolo da vida desregrada do personagem. Ele tenta subir por uma encosta, mas é impedido por uma onça, um leão e uma loba que o forçam a descer a um lugar onde não alcançaria a luz do sol. Ali ele encontra a alma do poeta Virgílio, que, atendendo a um pedido de Beatriz – amor platônico do poeta, morta precocemente –, se dispõe a guiá-lo pelo único caminho possível para sua salvação: inicialmente pelos reinos da dor, da esperança e, por fim, da bem-aventurança. Inicia-se a viagem, primeiramente transpondo a porta infernal que termina com a mais terrível das maldições: deixai toda esperança, vós que entrais! Mas antes é preciso dizer sobre a geografia do lugar. O Inferno tem um anteinferno, onde estão as almas recusadas por Deus e pelo Diabo; depois divide-se em duas partes: o alto Inferno, dos círculos 1 a 5; e o baixo Inferno ou Dite, círculos 6 a 9.

O primeiro círculo é o Limbo, onde se encontram as almas dos justos que viveram antes do cristianismo. Ali é a morada do próprio Virgílio: um castelo circundado por sete muros, símbolo das sete artes liberais cultivadas na Antiguidade. No segundo círculo, dos luxuriosos, ocorre um dos episódios mais comoventes da Comédia: o encontro com Francesca da Rimini e Paolo Malatesta. Dante tem clara simpatia pelos dois, mas o adultério não tem o seu perdão. E segue a viagem: no terceiro círculo, os gulosos; no quarto, avarentos e perdulários; no quinto, os coléricos; no sexto, os hereges; no sétimo círculo, em três divisões diferentes, estão os violentos contra o próximo (assassinos), contra si mesmos (suicidas) e contra Deus e a natureza (blasfemos, homossexuais e agiotas). Neste último, Dante encontra seu velho mestre Brunetto Latini. No oitavo círculo, chamado Malebolge ou “fossas malditas”, em dez outras divisões, encontram-se os fraudadores: gigolôs e sedutores, aduladores, simoníacos, adivinhos, astrólogos e bruxas, corruptos, hipócritas, ladrões, maus conselheiros, criadores de intrigas e cismas e falsários. Finalmente, no nono círculo, acham-se os traidores, em quatro compartimentos assim denominados: Caína, traidores da família; Antenora, da pátria; Tolomeia, da amizade; e Judeca, da bondade. Na Antenora, Dante e Virgílio encontram-se com o conde Ugolino a roer o crânio de seu inimigo, o arcebispo Ruggeri. Ugolino narra a traição do arcebispo, que o caluniara e em seguida trancou-o numa torre com seus quatro filhos, condenados a morrerem de fome. Vendo o desespero do pai, que mordia a própria mão, as crianças oferecem suas carnes para prolongar a vida do pai. No ponto mais fundo do Inferno, que é também o centro da Terra, sobre as águas congeladas do Cocito, o próprio Lúcifer, com três faces e três bocas, mastiga os supremos traidores: Judas, Cássio e Bruto. As três faces de Lúcifer contrapõem-se à Santíssima Trindade, simbolizando o ódio, o vício e a ignorância. Judas, traidor de Cristo, é o símbolo da traição ao divino. Cássio e Bruto, traidores de Júlio César, representam a traição ao humano. 

VIII

Dante e Virgílio, a partir do centro da Terra, começam um movimento de subida, saindo no hemisfério oposto àquele por onde entraram, até poderem rever a luz do Sol. Chegam ao pé de uma montanha, que é o próprio Purgatório, onde são recepcionados por Catão de Útica, símbolo da Roma antiga. Este é um ponto, para mim, até hoje impenetrável. Catão, suicida, vaga na parte exterior do Purgatório, antes mesmo do vestíbulo. No encontro com os poetas, ele relembra Márcia, sua esposa, que ficara no Limbo, onde ele também estivera. Catão, que preferira a morte a submeter-se a César, ocupa, na geografia da Comédia, um lugar estranho.     

A viagem segue pelo Purgatório. O leitor vai notar que alguns pecados punidos no Inferno o são também ali. O critério deve ser de intensidade. No vestíbulo, os peregrinos encontram os excomungados e os arrependidos de última hora. Os sete patamares da montanha representam os pecados capitais. No primeiro patamar estão os soberbos. No segundo, os invejosos. No terceiro patamar, os coléricos. Marco Lombardo, falando por Dante, diz que a corrupção decorre de maus governos e especialmente da confusão entre o poder espiritual e o poder temporal. O quarto patamar destina-se aos preguiçosos. O quinto, aos avarentos e perdulários. Neste, eles assistem ao espetáculo do fim da expiação do poeta napolitano Estácio, autor da Tebaida, que, purificado, após mais de 12 séculos de penitência, pôde, enfim, ascender ao Paraíso. Mas, segundo se apurou séculos depois, o Estácio poeta jamais se convertera ao cristianismo: Dante o confundira com um outro Estácio, retórico, de Tolosa. No sexto patamar encontram-se os gulosos e, finalmente, no sétimo, os luxuriosos. 
Beatriz, por Doré. Canto XXX, do Purgatório.

No paraíso terrestre, o último patamar do Purgatório, Dante e Virgílio testemunham uma série de prodígios, até que um carro guiado por anjos traz, finalmente, Beatriz. Virgílio despede-se: estava cumprida sua missão, como símbolo da humana sabedoria. Dali em diante todos os acontecimentos teriam um caráter divino, inalcançável a ele. Beatriz, num anticlímax, fria como uma santa, repreende Dante por seus pecados e o faz mergulhar no Letes, o rio do esquecimento, e, em seguida, no Eunoe, que mantém apenas as boas lembranças. Purificado, Dante eleva-se com Beatriz ao Paraíso.