Amigos do Fingidor

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Medicina como especialidade social – punição na má prática e pagamento nos bons resultados

João Bosco Botelho



Com o sedentarismo avançando, no Neolítico, importantes modificações foram se processando nos grupos sociais que habitavam as terras férteis da Mesopotâmia e do Egito. Essas sociedades arcaicas iriam absorver parte da experiência acumulada. Nessa fase, ocorreu o início da modificação da economia produtora, passando do nível de subsistência coletiva à concreta divisão do trabalho, com o aparecimento do excedente de produção e das trocas comerciais. As sociedades mostravam-se francamente hierarquizadas. Também surgiram as propriedades privadas, que possibilitaram os assentamentos duradouros dos grupos humanos e evoluiriam para a organização das primeiras aldeias.

As cidades foram sendo formadas como produto da transformação e fortalecimento dos grupos sociais, ao mesmo tempo em que as sociedades arcaicas se estruturaram social e politicamente, processando-se assim as modificações que dariam início ao aparecimento das civilizações regionais. Entre elas, destacaram-se aquelas que ocuparam as terras próximas dos rios piscosos e obtiveram significativos avanços na guarda territorial e poder de guerra: a babilônia e a egípcia. Esses povos, mesmo mantendo importantes diferenças, influenciaram, direta e indiretamente, as culturas posteriores.

As civilizações regionais assimilaram, ao longo de vários milênios, diferentes formas de governos, predominando o teocrático de regadio e mercantil-escravista. Nessas sociedades rigidamente hierarquizadas, moldaram a ação do curador, nessa fase já reconhecido como médico, pelo menos aquele oriundo dos grupos dominantes.

As guerras fratricidas foram frequentes e contínuas, oferecendo como produto final dos saques novos escravos e territórios, fortalecendo a propriedade e a escravidão. Durante as guerras, deve ter ocorrido a participação ativa dos médicos, principalmente no manuseio das grandes feridas traumáticas e nas amputações cirúrgicas dos membros dilacerados.

Os metais foram fundidos e o cobre utilizado em várias atividades produtivas. A mecanização da agricultura tomou corpo com os arados primitivos. Apareceu o barco com vela e o uso comum do ferro. Esses fatos da nova vida social, comprovados pela arqueologia, contribuíram para aumentar as trocas do excedente da produção, fortalecendo a maior especialização da sociedade.

O corpo humano também foi manuseado nos rituais religiosos para a conservação após a morte. Essa conduta alcançou níveis de alta sofisticação entre os egípcios, sem que representasse avanço no conhecimento da anatomia. A retirada das vísceras, algumas completamente fragmentadas ou liquefeitas, como o cérebro, era consumada exclusivamente para melhor preservar o corpo. Mesmo com a clara diferenciação entre os que manuseavam o corpo com fim religioso e outros que tentavam entender e nominar as doenças, em torno de 3.500 anos, já estava estabelecida a figura social do médico como um dos especialistas nas relações sociais.

A atividade médica deveria ser intensa e diferenciada nos vários extratos da sociedade, suficiente para dar origem aos conflitos muito frequentes, gerando mal-estar social e obrigando o legislador a intervir. O rei Hammurabi (1728-1688 a.C.), da Babilônia, dedicou vários parágrafos do seu famoso código para disciplinar o exercício da Medicina, impondo prêmios e castigos. Nos parágrafos 218 a 223, está claro que: o médico era reconhecido e ocupava espaço importante nas relações sociais numa sociedade claramente hierarquizada.

Somente é possível entender as severidades das penas como espelho do problema social gerado pelo grande número de conflitos oriundos da ação médica prejudicial:

218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os direitos de cidadão) uma incisão difícil com uma faca de bronze e causou a morte do awilum ou abriu o nakkaptum (arco acima da sobrancelha) de um awilum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão;

219 – Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de muskenum (intermediário entre o awilum e o escravo) e causou a sua morte: ele deverá restituir um escravo como o escravo morto;

220 – Se ele abriu a nakkaptum de um escravo com uma faca de bronze e destruiu o seu olho: ele pagará a metade do seu preço;

221 – Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente: o paciente dará ao médico 5 ciclos (cerca de 40 gramas) de prata;

222 – Se foi filho de um muskenum: dará 3 ciclos (cerca de 24 gramas) de prata;

223 – Se foi um escravo de um awilum: o dono de escravo dará 2 ciclos (cerca de 16 gramas) de prata.

Com isso o Código de Hammurabi formou jurisprudência com dois pontos cruciais da ordem médica: as sanções que devem receber os médicos pela imprudência, imperícia e negligência e os honorários médicos diferenciados pelo atendimento de pessoas integrantes dos diversos grupos sociais.