Amigos do Fingidor

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A Divina Comédia humana 2/6

Retrato Alegórico de Dante, por Bronzino.
Zemaria Pinto


III

Comecemos pelo realismo de A Divina Comédia. Dante não economiza detalhes realistas na sua narrativa, em especial nos sofrimentos infligidos aos condenados ao Inferno. Além do mais, a maior parte dos personagens de Dante é composta de pessoas que existiram de fato, boa parte delas, inclusive, contemporâneas do poeta. O próprio Virgílio, que lhe serve de guia no Inferno e no Purgatório, nascido em Mântua, foi o mais notável poeta de Roma, protegido de Mecenas e do imperador Otávio Augusto, morrendo, entretanto, sem conhecer Cristo, o que o condena ao Limbo, sobre o qual falaremos adiante. Virgílio escreveu, em latim, a Eneida, que conta a sequência da Ilíada, culminando com a história da fundação de Roma, e, por extensão, da Itália. No imaginário da época, Virgílio representava o que Dante representa hoje para nós.

Mas o realismo de Dante não se assemelha em nada à escola que iria vigorar no século XIX. Dante faz um “realismo maravilhoso”, isto é, ao lado de fatos históricos e personagens reais, ele coloca elementos da mitologia cristã e da mitologia greco-latina. No conceito de realismo maravilhoso, que só foi estabelecido no século XX, os elementos mitológicos convivem de forma natural com os elementos realistas da trama. É o mesmo princípio dos contos de fadas. Para diferençarmos do “realismo fantástico”, esclareça-se que neste, ao contrário, o sobrenatural acontece quebrando a harmonia da realidade.   

Dante, aliás, utiliza A Divina Comédia para se expressar politicamente. Nada mais real que a política. Condenado à morte e exilado de sua Florença natal, o poema foi todo escrito nessa condição, entre 1302 e 1321. Dante, que perdera a luta política em Florença, tinha outras lutas a travar, como a separação entre o poder espiritual, representado pelo papa, e o poder temporal, representado pelo imperador. Dante defendia a monarquia como sistema de governo e defendia também que o papa não tinha o direito de se imiscuir nos problemas de Estado, uma atribuição exclusiva do monarca. Ao papa restava administrar o seu rebanho, o que era, por si , tarefa gigantesca. Uma outra luta de Dante, difícil de compreender hoje, era pelo fim da venda de indulgências: a Igreja vendia o perdão pelos pecados e iam para o inferno os pobres, que não podiam comprá-lo. Por várias vezes, ao longo da Comédia, Dante condena esse comércio vil. Essas preocupações tão prosaicas estão refletidas na Comédia, especialmente no Inferno, para onde Dante condena os que não pensavam como ele. Aliás, não se espante o neoleitor da Comédia com a intolerância de Dante: pobre, ele não perdoa aos ricos; vencido, não perdoa aos vencedores; errante, não perdoa aos estáveis. Inimigos e não-inimigos amargam a eternidade no Inferno. Humano, demasiadamente humano.

IV

Escrevi Comédia, em vez do título completo. Então, é hora de mudar de assunto. O primeiro título dado por Dante ao seu superpoema foi exata e simplesmente esse: Comédia. A razão é aristotélica. A Poética preceitua que as obras que tratam de assunto nobre em estilo elevado – e invariavelmente terminando em carnificina – são chamadas de tragédias. Ora, a obra de Dante começa muito triste, no Inferno, mas termina numa explosão de alegria e felicidade, no Paraíso – e é lavrada em linguagem popular, em italiano, não em latim, como era praxe, pois Dante pretendia voltar laureado a sua Florença natal. Esses elementos, por oposição, levam-no a classificar seu poema de Comédia. Mas há que se observar que o sentido mais elementar da palavra é de celebração a Dioniso, divindade relacionada à embriaguez e à alegria provocadas pelo vinho. Nos cultos dionisíacos, verdades eram representadas ridicularizando aqueles que foram pegos em falta.  

Reza a lenda que foi Giovanni Boccaccio (1313-1375), autor de um monumento menor, Decameron, quem, apaixonado, colou o adjetivo “divina” à Comédia. Comentários sobre A Divina Comédia, que Boccaccio escrevia antes de morrer, era uma compilação das conferências sobre a Comédia e seria o primeiro estudo de fôlego sobre o poema. Mas antes ele escrevera Tratado em louvor a Dante, a primeira biografia do mestre, responsável pela fixação de sua imagem como a conhecemos: rosto longo, nariz aquilino, corpo curvado e expressão melancólica.