Retrato Alegórico de Dante, por Bronzino. |
Zemaria Pinto
III
Comecemos pelo realismo de A Divina Comédia . Dante não economiza detalhes realistas na sua narrativa , em especial nos sofrimentos infligidos aos condenados ao Inferno . Além do mais , a maior parte dos personagens de Dante é composta de pessoas que existiram de fato , boa parte delas, inclusive , contemporâneas do poeta . O próprio Virgílio, que lhe serve de guia no Inferno e no Purgatório , nascido em Mântua, foi o mais notável poeta de Roma, protegido de Mecenas e do imperador Otávio Augusto , morrendo, entretanto , sem conhecer Cristo , o que o condena ao Limbo , sobre o qual falaremos adiante . Virgílio escreveu, em latim , a Eneida, que conta a sequência da Ilíada, culminando com a história da fundação de Roma, e, por extensão , da Itália. No imaginário da época , Virgílio representava o que Dante representa hoje para nós .
Mas o realismo de Dante não se assemelha em nada à escola que iria vigorar no século XIX. Dante faz um “realismo maravilhoso”, isto é, ao lado de fatos históricos e personagens reais, ele coloca elementos da mitologia cristã e da mitologia greco-latina. No conceito de realismo maravilhoso, que só foi estabelecido no século XX, os elementos mitológicos convivem de forma natural com os elementos realistas da trama. É o mesmo princípio dos contos de fadas. Para diferençarmos do “realismo fantástico”, esclareça-se que neste, ao contrário, o sobrenatural acontece quebrando a harmonia da realidade.
Dante, aliás , utiliza A Divina Comédia para se expressar politicamente. Nada mais real que a política . Condenado à morte e exilado de sua Florença natal , o poema foi todo escrito nessa condição , entre 1302 e 1321. Dante, que perdera a luta política em Florença, tinha outras lutas a travar , como a separação entre o poder espiritual , representado pelo papa , e o poder temporal , representado pelo imperador . Dante defendia a monarquia como sistema de governo e defendia também que o papa não tinha o direito de se imiscuir nos problemas de Estado , uma atribuição exclusiva do monarca . Ao papa restava administrar o seu rebanho , o que era , por si só , tarefa gigantesca . Uma outra luta de Dante, difícil de compreender hoje , era pelo fim da venda de indulgências : a Igreja vendia o perdão pelos pecados e só iam para o inferno os pobres , que não podiam comprá-lo. Por várias vezes , ao longo da Comédia , Dante condena esse comércio vil . Essas preocupações tão prosaicas estão refletidas na Comédia , especialmente no Inferno , para onde Dante condena os que não pensavam como ele . Aliás , não se espante o neoleitor da Comédia com a intolerância de Dante: pobre , ele não perdoa aos ricos ; vencido, não perdoa aos vencedores; errante , não perdoa aos estáveis . Inimigos e não-inimigos amargam a eternidade no Inferno . Humano , demasiadamente humano .
IV
Escrevi Comédia, em vez do título completo. Então, é hora de mudar de assunto. O primeiro título dado por Dante ao seu superpoema foi exata e simplesmente esse: Comédia. A razão é aristotélica. A Poética preceitua que as obras que tratam de assunto nobre em estilo elevado – e invariavelmente terminando em carnificina – são chamadas de tragédias. Ora, a obra de Dante começa muito triste, no Inferno, mas termina numa explosão de alegria e felicidade, no Paraíso – e é lavrada em linguagem popular, em italiano, não em latim, como era praxe, pois Dante pretendia voltar laureado a sua Florença natal. Esses elementos, por oposição, levam-no a classificar seu poema de Comédia. Mas há que se observar que o sentido mais elementar da palavra é de celebração a Dioniso, divindade relacionada à embriaguez e à alegria provocadas pelo vinho. Nos cultos dionisíacos, verdades eram representadas ridicularizando aqueles que foram pegos em falta.
Reza a lenda que foi Giovanni Boccaccio (1313-1375), autor de um monumento menor, Decameron, quem, apaixonado, colou o adjetivo “divina” à Comédia. Comentários sobre A Divina Comédia, que Boccaccio escrevia antes de morrer, era uma compilação das conferências sobre a Comédia e seria o primeiro estudo de fôlego sobre o poema. Mas antes ele escrevera Tratado em louvor a Dante, a primeira biografia do mestre, responsável pela fixação de sua imagem como a conhecemos: rosto longo, nariz aquilino, corpo curvado e expressão melancólica.