João Bosco Botelho
Entre os anos 1960 e 1970, os cursos de Medicina, no Brasil, desvincularam-se mais das relações históricas do doente com as doenças. Esse fato pode ter contribuído para acentuar a desinformação sobre o papel da Medicina ao longo de quase quatro milênios de história, como especialidade social no processo de busca, para manter a solidariedade aos doentes, aumentar a materialidade e diminuir a abstração na abordagem da saúde e da doença.
O processo que culminou com a Medicina como especialidade social, com avanço e recuos, tem proporcionado:
- Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;
- Estabelecer os parâmetros do normal e da doença;
- Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte.
É mais difícil ao médico da atualidade compreender a Medicina, sem o olhar para trás e apreender a dinâmica social correlacionada às práticas de curas.
Esses saberes históricos facilitam o entendimento da função do médico, como um dos especialistas sociais que trabalham para evitar a dor e empurrar os limites da morte, tanto no passado quanto na sociedade contemporânea.
Sob esse enfoque – a Medicina como especialidade social –, não há como dissociar o presente do passado distante. As práticas de curas constituem um processo iniciado muito antes de a nossa espécie ter promovido o sedentarismo. Infelizmente, os registros arqueológicos daquela época se mostram insuficientes para que as análises paleopatológicas possam caracterizar algumas ações intencionais e repetidas do homem sobre o corpo de outro homem.
É possível que as comunidades ágrafas tivessem na busca da sobrevivência cotidiana e na observação das mudanças, em torno da natureza circundante e do corpo, grande parte da sua atenção. As relações entre vida-morte e saúde-doença deveriam estar entre elas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva. Esse conjunto pode ter provocado a especialização de alguns dos seus membros, que se interessaram para controlar as situações de risco à segurança e à vida.
Nessa fase, quando o nosso ancestral começou a apreender e tentar modificar o processo natural dos binômios vida-morte e saúde-doença, estava iniciado o extraordinário processo humano com o objetivo de diminuir a abstração e aumentar a materialidade dos acontecimentos e ações que pudessem evitar a dor e empurrar os limites da vida.
Essas pessoas diferenciadas fizeram-se curadores. Foi nesse contexto, no qual alguém passou a cuidar do outro, ferido, impossibilitado da locomoção, ou da própria proteção, que os elos de confiança entre o curador e o doente iniciaram as bases da Medicina como especialidade social.
Os mais antigos registros paleopatológicos indicativos da existência das práticas de curas, na pré-histórica, surgiram em comunidades ágrafas, alguns milhares de anos antes dos documentos escritos na Mesopotâmia.
Os indicativos evidenciam que o processo biológico de desenvolvimento e adaptação ao meio ambiente dos nossos ancestrais está voltado à fuga da dor e à busca do prazer. Os registros do homem da espécie Homo sapiens datam de aproximadamente 500.000 anos, correspondendo aos Pleistocenos Médio e Superior. Contudo, a documentação fóssil existente da primeira ação médica conhecida, no homem pré-histórico, data de 45.000 anos, no Pleistoceno Superior. Trata-se do esqueleto de um Neandertal, descoberto no monte Zagros, no Iraque, com traços de amputação intencional, no braço direito, com a marca indiscutível de o osso ter sido seccionado com a ajuda de objeto cortante. Sem que saibamos a razão pela qual o hominídeo teve o braço amputado, se resultante ou não de trauma, é indiscutível que um ou mais homens praticaram a ação dirigida no corpo de outro homem.
Existem outras ações curadoras bem documentadas, como a encontrada no osso rádio de alguém que viveu em torno de 25.000 anos, com sinal de fratura traumática consolidada após ter sido colocada no lugar certo, dessa forma demonstrando que foi ajudado por outro membro do grupo social.
Sem dúvida, fora das lesões determinadas pelos traumas, acidentes e embates dos nossos ancestrais entre eles e com outros animais, muitas doenças causadas por vírus, fungos e bactérias existiram antes do aparecimento da nossa espécie planeta. A questão maior é tentar saber como essas sociedades primitivas se relacionavam com essas doenças na sua luta pela sobrevivência.
Os registros arqueológicos e paleopatológicos podem estabelecer paralelismos da ação curadora exercida pelos ancestrais pré-históricos.