V
Uma outra discussão que irá sempre abalonar a paciência do leitor neófito é quanto ao gênero do poema. Seria A Divina Comédia um poema épico? Ou seria um imenso poema lírico, na verdade, composto de inúmeros pequenos poemas? A discussão é ociosa. Passando por cima dos conceitos, vamos ao que interessa. A resposta é nem uma coisa nem outra, simplesmente porque não tem características de um nem de outro. Antes, a Comédia é um poema alegórico – uma representação simbólica de pensamentos e ideias. É a alegoria da purificação de um pecador, que, vivendo no exílio, já estava em estado permanente de penitência. É a alegoria da história do povo italiano, contada nos inúmeros episódios em que personagens da história daquele país aparecem, ora degradados, ora penitentes, ora glorificados, de acordo com a visão do poeta. Mas é também uma alegoria da história da humanidade: a viagem de Dante é a viagem do Homem em busca de si mesmo, de sua harmonia individual, tendo por fim a harmonia coletiva, sob as bênçãos de um Deus benevolente com aqueles que a Ele se submetem. Perceberam como a leitura alegórica transitou para a leitura moralista? Para Dante, seu poema é um instrumento que irá concorrer para o seu perdão político e pela sua glória como artista, mas é também o artefato que irá permitir ao seu leitor formar uma consciência histórica e, sobretudo, sedimentar opinião sobre as questões políticas e éticas do seu tempo.
VI
É impossível falar da Comédia sem tocar num assunto ordinário: a estrutura do poema. Pula esta parte, leitor bem informado. O poema tem uma estrutura fechadíssima, apesar de seu desenvolvimento ser episódico. Mas Dante promoveu tantas amarrações que é impossível considerar a Comédia a não ser em sua totalidade. O poema, como já deve ter ficado claro para o leitor, divide-se em 3 partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada uma dessas partes tem 33 cantos, sendo que o Inferno tem um canto introdutório, totalizando 100 cantos, para um total de 14.233 versos. Os cantos são estruturados em estrofes de 3 versos e versos de 10 sílabas, com um esquema rímico original, a terça rima ou rima dantesca, que consiste em rimar, numa estrofe, o primeiro verso com o terceiro e o segundo verso com o primeiro da estrofe seguinte, numa sequência que só é interrompida no último verso de cada canto, que é solto, descolado de um terceto. Veja como funciona a terça rima nas palavras que Dante e Virgílio lêem no portal do inferno:
Por mim se vai à cidade dolente, (A)
Por mim se vai até a eterna dor, (B)
Por mim se vai entre a perdida gente. (A)
Moveu justiça o meu supremo autor: (B)
Divina potestade fez-me e tais (C)
A suma sapiência, o primo amor. (B)
Antes de mim não houve coisa mais (C)
do que as eternas e eu eterno duro. (D)
Deixai toda esperança, ó vós que entrais. (C)
(O Inferno, III, 1-9. Trad. De Vasco Graça Moura)
Cada uma das três partes termina com a palavra “estrelas” e cada lugar visitado tem 10 compartimentos: um vestíbulo mais 9 círculos no Inferno; uma área externa, um vestíbulo, 7 patamares, mais o paraíso terrestre no Purgatório; e 9 céus mais o empíreo no Paraíso. Esses números nos remetem a dois números como base de qualquer investigação numerológica na Comédia: 3 e 10 e seus múltiplos. O número 3 representa a Santíssima Trindade. O número 10 é o número da perfeição, da totalidade, da volta à unidade após o ciclo dos 9 números iniciais. Mas, atenção, leitor, a numerologia não tem amparo na teologia cristã.
A base científica da Comédia são as teorias de Ptolomeu, que acreditava ser Terra o centro do universo. Essa teoria perdurou ainda por mais de dois séculos depois, até que Copérnico apresentasse os princípios do heliocentrismo. A base ético-moral-teológica da Comédia está, sobretudo, na Suma Teológica de Tomás de Aquino. Mas o principal assunto da Comédia é a história, que Dante mescla, sem nenhuma consideração com a verossimilhança, com a mitologia. Ou seria esse procedimento a chave para melhor entender a intenção fictícia do poema? Deixemos de lado a mitologia cristã, que, no contexto do poema, é verossimilhante, e lembremo-nos de que uma das passagens mais marcantes do Inferno é o encontro de Dante e Virgílio com o herói Ulisses, que lhes dá uma versão inédita de sua morte. Há inúmeros usos dessa mitologia, como o Minotauro, Jasão, Medusa, as Fúrias, o cão Cérbero, entre tantos. Mas o paradoxo dessa mistura, me parece, é a invocação que o poeta faz a Apolo, pai das nove musas e patrono dos poetas, dentro do Paraíso, para descrevê-lo:
Ó bom Apolo, ao fim em que laboro
faz-me de teu valor o pleno vaso
quanto pedes a dar o amado louro!
(O Paraíso, I, 13-15. Trad. De Vasco Graça Moura)