Zemaria
Pinto
Caderno do escritor
Falei da árvore e dos frutos maturados.
Pouco resta para falar desse fruto novo (novo, mas não verde) que é o livro Caderno do escritor, onde Adrino Aragão
exercita, de modo ainda mais radical, o conto minimalista, não importa o nome
que damos a ele. São 116 contos, mais um bônus sobre o qual falarei mais
adiante.
Espelho
meu, dizei-me: qual desses dois sou eu?[1]
Uma frase em uma linha, duas orações e
nove palavras. Isto é um nanoconto de Adrino Aragão.
Vamos analisá-lo sumariamente. Em cada
uma das orações, Adrino recupera alguns séculos de tradições literárias.
“Espelho meu” é a clássica fala da madrasta de Branca de Neve, narrativa originária
da tradição oral alemã, provavelmente da Idade Média, e compilada pelos irmãos
Grimm na primeira metade do século XIX. A segunda frase – qual desses dois sou
eu? – é a expressão profunda da figura literária chamada “duplo”, expressa,
para melhor entendimento, pela fórmula “eu = outro”. Ao defrontar-se com o
espelho e fazer a pergunta, o narrador-personagem remete-nos a Jorge Luis
Borges, uma influência confessa na obra de Adrino Aragão. Mas isso é pouco. Há mais
de dois mil e duzentos anos, o romano Plauto já brincava com essa figura em Anfitrião. Mas não nos alonguemos, isto
é apenas uma apresentação, não uma tese.
Alguns contos parecem ser a conclusão de
uma narrativa mais longa. Cabe ao leitor montar a história anterior. Um
exemplo:
Há
uma dor ácida de profunda solidão por toda a quitinete, desde que ela me
deixou. Acordo (acordo?) no meio da noite, não sei que rumo tomar: você não
sabe o que é o amor de um velho apaixonado[2].
Alguns contos não escondem que são
poemas, como neste autêntico haicai:
Trégua
na mata:
o
grito do acauã
esfacela
o silêncio[3].
A metalinguagem é tema recorrente, como demonstrado
por Joaquim Branco, na obra de Adrino Aragão. E não poderia ser diferente neste
livro, onde vários contos são construídos a partir do tensionamento entre o
narrador e a narrativa. Este conto de sete palavras poderia ser inserido na
parte inicial deste trabalho, onde tentamos definir o conto enquanto gênero
literário:
O
conto não é ponto final: é interrogação[4].
O bônus a que me referi anteriormente é
um conto chamado “Velho Catuxo”, apresentado em três versões. E mais não direi
para não estragar a surpresa.
Poderia falar muito mais sobre este
pequeno grande livro, que confirma a assertiva de Bachelard: “a miniatura é uma
das moradas da grandeza”[5].
Poderia citar exemplos da sensualidade que penetra suavemente vários contos do
livro... Poderia falar das personagens do povo, naturalmente anônimas: o homem
rico e generoso que foi parar no asilo de velhos desamparados, a menina pobre
que deu o golpe do baú, o jogador de futebol vencido pelas drogas, a Nega
Charuto no céu... Não. Leiam e releiam e descubram esse universo mínimo de
Adrino Aragão, contido nesta casca de noz que é o Caderno do escritor e vão compreender porque o poeta e pintor
Fernando Abritta, que ilustrou o livro, dedicou-lhe estas enigmáticas palavras:
Adrino
escreve como um menino que, munido de uma atiradeira, vai acertando as lâmpadas
acesas que iluminam o cotidiano e, ao quebrar essas certezas, faz com que a
gente enxergue um pouco melhor[6].
Adrino, meu velho, aceite o meu abraço
fraterno por mais esta façanha.