João Bosco Botelho
Como todas as especialidades sociais, a Medicina deve ser
compreendida no contexto da totalidade social do homem, evitando a restrição da
ação individual imposta pela relação médico‑paciente. Essa atitude política impõe
dificuldades crescentes porque alarga o espectro de representação e obriga a
participação do médico, como agente oficial da medicina, nos destinos da
sociedade.
Há muito tempo existe o tácito reconhecimento de
diferentes práticas médicas entre ricos e pobres. Platão (República, 406, d) observou
as diferentes consultas: enquanto o abastado dispunha de tempo e dinheiro para
pagar regiamente o médico, o pobre sem temo e dinheiro, não recebia atenção
semelhante.
A situação mudou pouco na atualidade. As análises das complicações
ocorridas nos serviços de emergência mostram que certas pessoas recebem
tratamento diferenciado. Na hora de decidir, o médico acaba levando em
consideração outros fatores além dos supostamente técnicos. Mesmo nos
ambulatórios, onde habitualmente não existe risco de vida, quando o paciente se
mostra mais esclarecido o profissional de saúde presta mais atenção no curso da
consulta.
Apesar de essas situações serem conhecidas, não existe no
momento qualquer perspectiva para modificá‑las, especialmente nos países onde
predomina a fome quantitativa ou quantitativa na maior parcela da população.
É certo que a crueldade da fome alcança a maior parte do
planeta. Embora a produção de alimentos tenha aumentado consideravelmente nos
últimos trinta anos, cerca de 2 bilhões de pessoas, no mundo, estão diariamente
privadas do alimento mínimo para viver com menos doença. Como as crianças não
comem o mínimo necessário, o sofrimento da fome se arrasta durante os primeiros
anos de vida, gerando a desnutrição e o conjunto de doenças incapacitantes ou
que aumentam a mortalidade. Também é importante assinalar que as crianças
nascidas de mães também subnutridas, jamais poderão desenvolver adequadamente
as funções motoras e de aprendizado. É uma verdadeira fábrica de deficientes
físicos e mentais.
No Brasil, o problema é de magnitude semelhante. Apesar de
ostentar a sétima economia mundial, algumas parcelas da população, as mais
pobres, têm a mesma expectativa de vida que os da Etiópia, Birmânia e El
Salvador. É exatamente por essa razão que fica difícil falar de medicina no
Brasil sem lembrar que, dois mil e duzentos anos depois, Platão registrou a
existência de Medicinas desiguais.
A maior parte das enfermarias dos hospitais públicos
brasileiros (os quem têm maior poder aquisitivo, raramente ocupam esses leitos)
está preenchida por pessoas e crianças portadoras de doenças causadas direta ou
indiretamente pela subnutrição crônica.
Os estudantes de medicina, todos os dias, vêm os pequenos
doentes que conseguem sair vivos da diarreia da ameba para retornarem, poucos
meses depois, com a pneumonia fatal. É realidade absolutamente inaceitável, resultante
de um processo econômico e social injusto e desumano, na medida em que
marginaliza, nos limites da miséria absoluta, parte significativa da população.
O combate à fome, evitando as doenças infecciosas
responsáveis pela elevada mortalidade infantil, não passa somente pelos
auxílios financeiros na forma de "bolsas", devem incluir
necessariamente ao direito à educação de boa qualidade em horário integral,
para ajuste da alimentação e atenção primaria à saúde.