João Bosco Botelho
Os restos
mortais dos nossos ancestrais mais distantes, os neandertalenses, portanto de
origem anterior à espécie Homo, em torno de 40.000 anos, em alguns sítios
arqueológicos, na Europa Central, de modo absolutamente extraordinário,
organizaram a crença no renascimento.
A
presença dos artefatos de caça e pesca com fartos pedaços de carne enterrados
junto ao morto, em diferentes grupos de caçadores-coletores, tanto de
neandertalenses quanto da espécie Homo, durante milhares de anos, traduz a
esperança comum de continuidade das principais atividades de sobrevivência, a
caça e a pesca, na nova vida após a morte. Os corpos foram sepultados com as
cabeças voltadas para o leste, definindo a clara intencionalidade com o curso
do nascimento do sol, sem dúvida, ligando também o sol à vida.
Esse
extraordinário conjunto simbólico da crença no renascimento após a morte está presente
desde o final do Paleolítico, não é demais repetir, há cerca de 40.000 anos.
Por outro
lado, outro registro arqueológico, em caverna de abrigo, atesta um crânio
humano colocado em lugar de destaque, sugerindo tratar‑se de altar primitivo. Esse
achado, descrito pelo professor da Leroi Gourhan, da Sorbonne, induz pensarmos
na possibilidade de "cultos ao crânio", traduzindo clara
diferenciação e impondo maior importância ao conteúdo do crânio, o cérebro, se
comparado à outra parte do corpo, impondo a dominância do cérebro dos nossos
ancestrais sobre os dos outros animais.
A partir do estudo comparativo entre esses
achados e as práticas entre os poucos grupos de caçadores‑coletores, na África,
foi possível compreender melhor o significado de uma antiga construção teórica
descrita como os humanos assumindo a postura de “senhor dos animais”. Esse ser
mítico, a mistura do homem com o animal envolvido na sobrevivência do grupo,
foi representado na arte rupestre de acordo com a posição geográfica da
comunidade. Em alguns casos foi o urso ou o cavalo, em outras o bisão ou a rena.
Igual
raciocínio pode amparar a interpretação do simbolismo das pinturas neolíticas, do
bruxo dançarino de Afvalingskop, na Ásia Central, e a do médico‑feiticeiro, da
gruta de Trois Frères, nos Pirineus franceses, ambos travestidos de animal em
movimento de dança, fazendo supor a participação em algum tipo de ritual.
Existe
incrível semelhança entre os trajes dos personagens com o usado pelo pajé, envolto
com a pele do bisão, nas celebrações da abundância entre os indígenas no Norte
dos Estados Unidos e as comemorações de alguns grupos étnicos No alto Rio Negro.
Tanto lá, como aqui, as festas coletivas comemoram desde a localização até o
abate do animal, para obtenção do alimento e do agasalho daqueles povos que ainda
mantêm a tradição de caçadores.
Os três
personagens, dois pintados em lugares diferentes em torno de 10.000 anos e dois
que ainda podem ser vistos, ficam quase completamente encobertos pela pele dos
animais. Esses personagens, no passado e no presente, conseguiram articular
linguagem capaz de acessar a coisa sagrada, perpetuando a crença na vida após a
morte, mas não só, também capazes de intervir como curadores.
A herança metamorfoseada
unindo sagrado e profano amparada na crença do “senhor do animal”, contribuiu
no aparecimento dos incontáveis curadores com saberes acumulados suficientes
para garantir a crença na possibilidade de mudar o visível.