Zemaria
Pinto
O conto à meia-luz
O professor Joaquim Branco trabalha com
três livros de Adrino Aragão: Inquietação
de um feto, Tigre no espelho e Conto, não-conto & outras inquietações.
Três momentos diferentes do autor, três fases distintas de uma mesma obra: o
jovem, o homem maduro, o mestre.
De Inquietação
de um feto, Joaquim Branco destaca “o poético na confluência da prosa”[1]:
de fato, Adrino Aragão opta pelo afastamento total do realismo que minava a
contística amazonense e constrói pequenas narrativas onde a linguagem transita,
sem nenhum pudor, entre o mito e o místico: “Voo de Ícaro”, “Invenção”, “Rosa
vigiada”, “Filho”, “O afogado”, são contos que, nas palavras de Arthur
Engrácio, sabiamente recuperadas por Joaquim Branco, “além de invadirem o
terreno do fantástico, do mistério e do absurdo, tocam de perto o poético.”[2] Para
ilustrar sua tese, Engrácio transforma os dois parágrafos, de cinco linhas
cada, do conto “Filho” em um poema, de duas estrofes, com sete versos cada,
“com resultados surpreendentes”:
Tens
as vestes esfarrapadas, meu filho.
Teus
caminhos são tortuosos.
Teus
pés estão feridos e o corpo lanhado de espinhos.
Te
perdeste na procura do caminho
onde
poucos estiveram.
O
cavaleiro da estrada quis punir-te;
foste
poupado.
Vem,
meu filho.
Vou
cobrir a nudez de teu corpo cansado.
Do
cordeiro e do leão fiei tuas vestes.
E
nas três varas de bambu
sustentarás
teu corpo.
Até
que a espiga haja crescido viçosa
e
teus filhos estejam alimentados[3].
Em Tigre
no espelho, Joaquim Branco ressalta “o uso da intertextualidade, da
metalinguagem e o enfrentamento do ‘outro’, presentes em quase todo o percurso
narrativo do livro, preparando o terreno que vai se tornar a própria substância
da ficção”[4].
De fato, usando referências que fazem
pontes entre Edgar Allan Poe e Franz Kafka, Guimarães Rosa e Ernest Hemingway,
Adrino Aragão constrói um labirinto borgeano onde em cada passagem questiona-se
o próprio fazer literário, tal como ensinara o onipresente Jorge Luis Borges. Joaquim
Branco diz que, valendo-se do entrelaçamento de textos e personagens diversos,
e de uma linguagem adstrita ao realismo fantástico, em Adrino “a mímese se
realiza predominantemente através de processos metalinguísticos”[5],
ao que eu acrescentaria o embate consigo mesmo (o outro, o espelho), usando a
literatura para desmistificar a si mesma, como neste fragmento, extraído de
“Anotações para um conto”:
Que
diabo! Um escritor não pode ficar tanto tempo sem escrever. Por mais que me
esforce não consigo escrever nada. Nem um conto sequer. O último trabalho como
que me sugou totalmente. Decidi não ficar esperando pela inspiração e tentei
desenvolver algumas ideias mas não deu certo. Só consigo escrever impulsionado
por uma força interior me sufocando, gritando para sair[6].
Em 1999, escrevi um breve e
despretensioso ensaio sobre Tigre no
espelho, onde observo que o tema central do livro é a problematização do
ato de criar, de fazer arte[7].
Esse tema está presente em dez dos doze contos do livro – que, por sinal, não
se enquadram no escopo restrito da obra de Joaquim Branco: os mini, micro ou
nanocontos. Mas é exatamente esse questionamento recorrente que interessa ao
crítico, antes de chegar à grandeza das miniaturas de Conto, não-conto & outras inquietações, o cerne de sua pesquisa.
Nesse livro, Joaquim Branco anota que “se
concentra a maior força criativa do autor, que consegue em poucas linhas,
descobrir – no sentido de abrir, levantar o véu – um universo de sugestões e
vias para o leitor. Ali são demonstradas as relações entre o trágico e o
cotidiano, remontando ao mitológico grego”[8].
Eu diria mais, pois Adrino Aragão, neste
livro mais que em qualquer outro, assume um lado regionalista – mas não aquele
ligado ao realismo-naturalismo: um regionalismo anterior, mítico,
essencialmente amazônida. Aliás, nunca é demais repetir: “poucas literaturas
têm uma retaguarda mitológica tão expressiva como a literatura amazonense;
poucas literaturas têm o luxo de uma mitologia própria, cujas origens
confundem-se com as várias etapas do desenvolvimento da humanidade”[9].
Como exemplo, o próprio Joaquim Branco cita o miniconto “encantamento”:
a
canoa solitária descia de bubuia as águas barrentas do solimões. ao redor de
chapéus de palha que flutuavam ao sabor da correnteza, o festim dos botos
anunciava o encantamento de duas cunhãs do vilarejo[10].
[1]
Obra citada: p. 62.
[2]
Obra citada: p. 68.
[3] Obra
citada, p. 68-69.
[4]
Obra citada: p. 51.
[5] Obra
citada: p. 53
[6] Tigre no espelho, p. 75.
[7]
“Tigre no espelho”, in: Análise Literária
das Obras do Vestibular 2000 (Manaus: EDUA, 1999).
[8] Obra
citada: p. 80.
[9]
Frases pinçadas do meu livro O conto no
Amazonas (Manaus: Valer, 2011. p. 19).
[10] Obra
citada: p. 75.