Zemaria Pinto
I
Chegamos à 10ª edição da medalha do Mérito
Cultural Péricles Moraes. Estive aqui nesta tribuna em 2007, quando o prêmio
era entregue pela terceira vez. Naquela ocasião, foram agraciados com a Medalha
o empresário Roberto Tadros, hoje nosso confrade, a inesquecível mestra Ivete
Ibiapina, a quem minhas filhas aprenderam a chamar de Tia Ivete, e o romancista
Milton Hatoum, inventor de algumas das personagens mais marcantes da literatura
brasileira dos últimos 25 anos.
Hoje, nos reunimos para
celebrar a obra social da Fazenda da Esperança, a arte multifacetada do
extraordinário Sergio Cardoso, e a literatura de um dos poucos sujeitos a quem,
nos meus 57 anos de vida, nunca tive dúvida em classificar como amigo: o poeta
Alcides Werk.
Mas antes, quero dedicar
algumas palavras à arte deste que empresta seu nome e sua data natalícia à
comenda: Péricles Moraes. Penso que não podemos deixar de relembrá-lo nesta
noite que é também dele, todos os anos, abril após abril. E assim como, há sete
anos, lembrei seu duplo discurso, por ocasião da instalação da Sociedade
Amazonense de Homens de Letras, antecessora de nossa Academia, na noite de 9 de
Janeiro de 1918, hoje falarei brevemente de um ensaio intitulado “Exaltações da
poesia tropical”[1], onde o
escritor se contrapõe, veladamente, ao nome misógino e machista daquela
Sociedade só de homens.
Pelo que se lê no
referido ensaio, dedicado à poesia da nossa querida Violeta Branca, a primeira
mulher a ocupar uma cadeira nesta Academia, em 1949, a entidade deveria se
chamar Sociedade Amazonense de Mulheres e Homens de Letras, exatamente nesta
ordem. Se não, vejamos.
Com a maestria que lhe
era peculiar, Péricles Moraes divide o trabalho em três partes: na primeira,
introduz a poesia de Violeta Branca, a partir do poema “Minha lenda”, que, não
por acaso, é o poema de abertura de Ritmos
de inquieta alegria, a obra seminal de Violeta. Sua leitura muito enriquece
o poema, tal a profusão de comparações e o uso referencial das mitologias as
mais diversas, numa demonstração ímpar de erudição, para explicar e justificar
a mitologia cabocla, onde um sincrético Tupã, para castigar a sedutora Iara,
castiga-a, transformando-a em mulher.
Na segunda parte do
ensaio, Péricles Moraes, a partir do perfil intelectual de Violeta Branca,
pinta um panorama da participação da mulher na literatura mundial, com ênfase
na Europa – na França, especialmente, mas sem esquecer as brasileiras Carolina
Nabuco, Lúcia Miguel-Pereira, Francisca Júlia, Cecília Meirelles e Gilka
Machado, entre outras, apontando que:
Se, em verdade, (as mulheres) vão sendo compreendidas e
justificadas as suas reivindicações sociais, as suas ambições profissionais, os
seus anseios emancipadores, bem ao revés, tudo se tem feito, sistematicamente,
odiosamente, para destruir as suas mais legítimas aspirações literárias e científicas.
(110-111)
Para deixar bem claro que suas palavras não são gratuitas, mero panegírico, o rigoroso crítico, faz uma ressalva, que, eu diria, ainda é atualíssima:
Não intento aludir, é claro, à farândola desconcertante das
versejadoras histéricas e medíocres que, à sombra dos dislates de um falso
modernismo, e numa linguagem referta de cacologias, no mesmo passo corrompem e
desmoralizam a arte e o idioma. (118)
Concluindo, Péricles retorna aos poemas de Violeta Branca:
Tudo na sua poesia é ansiedade e inquietude. Não aquela
inquietude que é ceticismo e ausência de fé, que é insatisfação e tendência
para os sofrimentos intelectuais, morais e metafísicos, mas a inquietude
estética de que nos fala Daniel Rops, infundindo-nos à alma um sentimento
raríssimo e que não encontramos senão nos artistas que trazem consigo “l’ardente
blessure du génie”. (119)
Péricles Moraes, o patrono desta Medalha que é a condecoração cultural mais cobiçada de nosso Estado, é um exemplo raro de intelectual que dedicou toda a sua vida aos estudos e a compartilhá-los com generosidade. É imortal, sim, pois seu trabalho extraordinário continua atual – e nós, seus atentos seguidores, abril após abril, continuaremos a reverenciá-lo.
(Discurso
proferido pelo acadêmico Zemaria Pinto, por ocasião da solenidade de entrega da
medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes, realizada no salão do Pensamento
Amazônico, sede da Academia Amazonense de Letras, em 25 de abril de 2014.
Continua na próxima quinta-feira.)
Continua na próxima quinta-feira.)
[1]
MORAES, Péricles. Os intérpretes da
Amazônia. Organização: Tenório Telles. Manaus: Valer e Governo do Amazonas,
2001.