João Bosco Botelho
As abadias
de Salerno e Montpelier, dois dos núcleos mais importantes das futuras
universidades, se distinguiriam por retomarem antigos conceitos éticos gregos
da Escola de Cós: “Em primeiro lugar, não façam mal”.
No medievo
europeu, as conjunções políticas determinadas pelos conflitos e contradições
entre a administração laica e a Igreja, determinou a desconstrução de grande
parte da conjunção da Medicina e do Direito. Nesse conjunto, o Direito
visigótico, em determinados momentos, se ajustou ao Direito canônico, que nem
sempre valorizou as recompensas após a morte em detrimento da vida vivida.
A idéia da
ordem universal, defendida de modo violento por algumas variantes do Direito
canônico, diminuindo grandemente a importância do indivíduo, freando o movimento
social, interferiu de modo brutal na busca da materialidade, tanto da doença
quanto do delito.
Nesse
conjunto muito complexo de fricções sócio-políticas, se destacou a obra de
Guilherme de Ockham (Opus nanaginta
dierum), de 1332, associando o Direito ao poder, em torno de duas
realidades confluentes: a primeira, inteligível e inserida na realidade
observável, sem natureza jurídica; a segunda, de natureza jurídica, atada ao
poder. Essa importante construção teórica associando Direito e poder servirá
para a retomada das idéias greco-romanas no Renascimento que se avizinhava.
Alguns
acontecimentos marcaram o Renascimento como um novo tempo na Europa,
interferindo diretamente na ética médica oriunda do medievo: publicação
mecanizada dos livros, ruptura com as
interdições eclesiásticas: dissecção pública de corpos humanos; publicação dos livros
“De humani corporis fabrica” de André Vesálio, “A cirurgia”, de Ambroise Paré, “Christianismno
restitutio”, de Miguel Servet, confrontando a veracidade da Trindade Cristã.
Entre tantas produções, se destacou o livro “De viscerum structura”, de Marcelo
Malpighi, descrevendo o mundo somente visível sob as lentes de aumento,
iniciando o pensamento micrológico, que pode ser considerado o segundo corte
epistemológico da Medicina.
Entre outras
singularidades do Renascimento se destaca a vontade coletiva de retomar os
ideários políticos da Grécia platônico-aristotélica. Desse modo, inicia-se
outra fase da ética médica com menos influência dos dogmas do cristianismo
medieval: retomada das diretrizes teóricas da Medicina greco-romana, atenuação do
valor atribuído aos santuários curadores, aumento do número de médicos oriundos
das novas universidades, maior participação de médicos laicos no processo
formador da Medicina e a presença de geniais pintores e escultores, como Miguel
Ângelo, Leonardo da Vinci, Rembrandt, entre outros, detalhando nas obras de
artes o corpo desnudo.
No andar
desmontando certos dogmas cristãos em torno da saúde e da doença as confrarias
e irmandades que cuidavam dos doentes, sob a guarda dos respectivos santos
protetores, como a dos cirurgiões sob a proteção de São Cosme e São Damião,
pelos Colégios e Academias laicos, como o Royal
College of Surgeons, em Londres, e a Sorbonne,
em Paris.
O Renascimento
também desmancha certas obscuridades do poder papal. Entre as muitas mudanças
nas relações sociais e políticas, na Europa central, desponta a cirurgia
apagada das práticas médicas, durante mil anos, por conta das interdições sob a
ameaça do castigo infernal: as práticas cirúrgicas não são mais compreendidas
como obras dos demônios, sendo incorporadas à Medicina.