João Bosco Botelho
No Renascimento
europeu, a Medicina oriunda das jovens universidades ampliava os domínios da
compreensão da saúde, aumentando a busca da materialidade da doença sob o
estandarte da micrologia.
De modo geral,
as práticas médicas retomaram os preceitos hipocráticos, reafirmados pelas
Escolas de Medicina de Montpelier e Salermo, ao tempo em que ratificou o
projeto teórico que avançaria até hoje: a busca da materialidade da doença nas
dimensões da matéria viva invisível aos olhos, só identificável sob as lentes
de aumento.
Essas
profundas mudanças alcançaram as antigas concepções da ética médica ligadas à
escolástica medieval. Talvez um dos mais importantes representantes dessa fase,
interligando a Medicina e o Direito, tenha sido Maquiavel, nas obras “Discurso”
e “O Príncipe”, em ambos discursando com claro desprezo ao mundo espiritual da
escatologia cristã, oriundo do Direito canônico, e valorizando a vida vivida.
Dessa forma, também se adicionou às novas reconstruções na busca da
materialidade da doença e do delito.
Em
seguimento sereno em torno da doença ligada à coisa material, o século 17
também conhecido como o século da razão trouxe o encontro entre busca da maior
liberdade com a ética médica. Esse complexo conjunto sócio-político foi tocado
pelas ideias de Newton, Descartes, Espinoza e Molière.
– Isaac
Newton (1643-1727), autor do “Principia”, um dos principais precursores do
Iluminismo. Quando a Universidade de Cambridge fechou as portas por causa do surto
da peste negra, trabalhando na própria casa, descobriu a lei da gravitação
universal e a natureza das cores, que mudariam para sempre os rumos da
ciência.
– René
Descartes (1596-1650), advogado, formado na Universidade de Poitiers, fundador
da filosofia moderna. Na principal obra “Discurso sobre o método”, se consagrou
na defesa do método cartesiano incluindo “Penso, logo existo”. Esse genial
filósofo expressou pensamentos revolucionários: supremacia da dúvida para
alcançar o conhecimento, rejeitando em bloco a estrutura dogmática da Igreja: por
essa razão é considerado o “pai do racionalismo”.
– Bento de
Espinoza (1632-1677), racionalista da Filosofia moderna, fugiu da Inquisição
portuguesa, defendeu o panteísmo. Em 1656, foi excomungado pela Sinagoga de Amsterdam,
por defender Deus como mecanismo imanente da natureza e do universo e a Bíblia
como obra metafórica e alegórica, não expressando a verdade sobre Deus. Após a
excomunhão adotou o nome Bendito, tradução do original Baruch. Dois pontos
importantes da filosofia desse extraordinário judeu: 1. Defesa de que a razão
não poderia dominar a emoção e uma emoção só seria consumada por outra emoção
anda maior; 2. Inovou ao afirmar que a ética não se opõe às emoções e que todos
deveriam buscar os instrumentos que constroem a felicidade e o bem-estar e
recusar os que determinam dor e sofrimento: a ética da alegria, da bem
querença.
Sob o
impacto dessas profundas mudanças estruturais as práticas médicas mantiveram o
processo de afastamento da Igreja e, em alguns aspectos, se identificaram com
os conceitos de Spinoza, nos seus geniais livros “A ética” e o “Tratado da
reforma do entendimento”, ambos valorizando a vida e rejeitando valores
negativos da compreensão dos conflitos sociais.
Nesse novo
contexto, a Medicina reconstruiu caminhos válidos até hoje: reconhecida como
partes importantes da construção do bom e da vida e jamais participar de qualquer
prática capaz de causar mal e a morte.