Zemaria
Pinto
Eneida
Eneida era volumosa de
corpo e de alma. Num tempo em que os bandidos, os loucos, as putas e os veados
da cidade eram conhecidos pelo nome, Eneida era a bondade personificada,
promovendo eventos filantrópicos, arrecadando dinheiro, víveres e medicamentos,
tratando aqueles marginais da sociedade como cidadãos, com incursões cotidianas
no presídio, no hospício, nos hospitais, nos puteiros e na Cidade Flutuante.
Para uns, era apenas uma demagoga, demarcando um espaço político; para outros,
a grande maioria, tinha aura de santa. Quando Eneida me procurou no banco,
pedindo contribuição para mais uma de suas iniciativas, não pude deixar de
reparar em seus seios excessivos, suas coxas colossais e sua bunda desmedida. Superlativa, Eneida era só adjetivos. Não foi difícil ganhar sua estima e confiança: virgem
ainda aos 28 anos, a sexualidade represada arrebentou todas as comportas da
abissal Eneida. Nos encontrávamos no único prédio de apartamentos da cidade,
onde morava sua amiga D. Leandra, que uma cirurgia malsucedida deixara cega de
um olho e a catarata cegava progressivamente o outro. Eneida era sua sombra,
dia e noite, e ela retribuía com um compreensível silêncio: D. Leandra, quando
mais jovem, fora uma cafetina famosa na cidade e ainda sofria com o
preconceito. Eneida passou em minha vida como uma chuva fininha na madrugada:
lenta, silenciosa e prazerosamente. Jamais brigamos, mesmo quando passava meses
sem procurá-la; estava sempre disposta, sorridente e com o tesão à flor da
pele. Assisti ao envelhecimento progressivo da vastidão de seu corpo, fonte de
alegrias inenarráveis. Quando morreu, pouco antes de completar 50 anos, de um
inexplicável mal súbito, a cidade parou para reverenciar Mãe Eneida. Acompanhei
o gigantesco e ecumênico cortejo de longe – e me flagrei excitado com a
lembrança vertiginosa dos momentos sagrados em que me perdi na imensidão de
Eneida.