domingo, 13 de abril de 2025
quinta-feira, 10 de abril de 2025
A poesia é necessária?
porto alegre, 2016
Angélica Freitas
quando você viu na TV
aquelas pessoas em fila na chuva
à noite numa estrada
na fronteira de um país que não as deseja
e quando você viu as bombas
caírem sobre as cidades distantes
com aquelas casas e ruas
tão sujas e tão diferentes
e quando você viu a polícia
na praça do país estrangeiro
partir para cima dos manifestantes
com bombas de gás lacrimogêneo
não pensou duas vezes
nem trocou o canal
e foi pegar comida
na geladeira
não reparou o que vinha
que era só uma questão de tempo
não interpretou como sinal a notícia
não precisou estocar mantimentos
agora a colher cai da boca
e o barulho de bomba é ali fora
e a polícia vai pra cima dos teus afetos
munida de espadas, sobre cavalos
terça-feira, 8 de abril de 2025
Onde o rio chega chega a vida
Pedro Lucas Lindoso
O meu
pai costumava se referir às pessoas nascidas na calha do rio Madeira como
conterrâneos. Para ele e muitos amazônidas, a sua lealdade, o senso de ser
natural, de terra natal, de pertencimento, enfim, está ligado mais ao rio do
que à cidade ou vila em que nascem. Daí a palavra ribeirinhos. Os caboclos são
tão ribeirinhos quanto as aves ribeirinhas. Vivem nos rios e pelos rios.
Os
nossos rios, sempre majestosos, serpenteiam pela floresta, deslizando entre as
árvores imensas do Amazonas. O título desta crónica foi inspirado em homilia do
Padre João Carlos, ao citar versículo do profeta Ezequiel. Como o rio que brota
do templo traz vida em abundância, o Amazonas, com sua imensidão e força, é a
artéria pulsante de um ecossistema bastante complexo.
As
aves, em suas cores vibrantes, dançam entre as copas das árvores, enquanto os
peixes nadam nas águas dos rios e igarapés, refletindo a luz do sol que se
infiltra por entre as folhas. Cada canto, cada movimento, é uma sinfonia que
ecoa na vastidão.
Os
ribeirinhos, que vivem em harmonia com o rio, entendem que o rio não é apenas
um recurso, mas uma fonte de vida. As águas são o sustento de suas comunidades,
de suas tradições e de suas histórias. É na beira do rio que a vida se renova:
nas colheitas das várzeas, nos igapós e no regime das águas; tempos de cheias e
de vazante. E claro, nas festas e nos rituais que celebram a conexão com a
natureza. Nos saberes repassados de geração a geração.
Mas,
assim como a vida floresce a partir das águas, também há a sombra da
degradação. O avanço do desmatamento, a poluição e as mudanças climáticas
ameaçam esse delicado equilíbrio. O rio, que antes era um símbolo de
fertilidade, agora carrega os vestígios de uma luta constante entre o progresso
e a preservação.
Os
habitantes da floresta, guardiões do saber ancestral, lutam para proteger esse
legado. Eles reconhecem que a saúde do rio é a saúde da terra. Cada ação, cada
escolha, reverbera na correnteza, e a vida que ali floresce depende da
sabedoria de quem a habita.
Assim,
onde o rio chega a vida se expande, mas é preciso cuidado. É um chamado à
responsabilidade: preservar a riqueza do Amazonas é garantir que as futuras
gerações herdem não apenas a beleza da natureza, mas também a sabedoria de
viver em harmonia com ela. O rio continua a fluir, e com ele, a esperança de um
futuro onde a vida, em toda sua diversidade possa sempre estar presente. Que o
versículo bíblico citado pelo padre João Carlos, do Livro de Ezequiel seja uma
verdade perene – onde o rio chega chega a vida.
domingo, 6 de abril de 2025
sexta-feira, 4 de abril de 2025
A lança de Anhangá: mais que um livro novo, uma nova literatura
Zemaria Pinto
Relutei
muito antes de escrever esta nota. Resisto ainda. Mas preciso seguir em frente.
Começo pelo fim: a conclusão expressa no título.
O livro
de contos de Ricardo Kaate Lima, vencedor do Prêmio Literário Cidade de Manaus,
de 2022, traz à literatura feita no Amazonas uma ramificação do gênero
fantástico como ainda não víramos nas melhores páginas de Erasmo Linhares ou
Adrino Aragão.
Na
verdade, se “o fantástico é a suspenção da realidade e o maravilhoso é a
realidade estendida”, como eu disse sobre os anões de Márcia Antonelli, estamos
diante, em A lança de Anhangá, de um caso extremo de realismo
maravilhoso, onde o não-real faz parte da realidade: uma paradoxal realidade
não-real, que assume, muitas vezes, uma ambientação distópica de pura fantasia
– fantasy art. Literatura em estado pleno.
Ricardo
Lima assume o regionalismo que a literatura anêmica do “Sul maravilha” – lembrando
a querida Graúna, criada pelo irmão do Betinho – insiste em fazer de conta que
não existe. Os sete contos do livro trazem narrativas que contrapõem a gente
comum e entidades que extrapolam a mitologia amazônica, como Anhangá, o demônio
do título. Aliás, autores de peso, como Câmara Cascudo e Nunes Pereira,
registraram que a grafia correta é Anhanga, mas a literatura – a melhor
literatura, como Gonçalves Dias e Machado de Assis – registra Anhangá. Nenhuma
dúvida. Mas o Anhangá de Kaate é menos um demônio que um justiceiro, na melhor
tradição das Graphic novels.
Ambientados
numa Amazônia futurista não muito distante, os contos de Kaate Lima colocam o
leitor, de supetão, entre as “guerras lunares de Phobos e Europa”, ou “em algum
lugar entre as Trevas Exteriores e as Terras Devastadas”. E pra não dizer que
não falei das flores, registro sem spoilers a narrativa mais completa do
livro, “O prelúdio da escuridão”, uma novela noir, para ser lida em
preto e branco, com todas as nuances de cinza. Sim, novela, não apenas pela
extensão, cerca de cem páginas, mas pela complexidade da trama e da narrativa.
No
centro dos acontecimentos, passados numa cidade semidestruída chamada Manaus,
assistimos ao confronto entre o agente federal Heitor Navarro e Anhangá, o
senhor das trevas, sugador de almas. O pano de fundo é um país dominado pelo totalitarismo
nazifascista, lembrando a ficção de George Orwell e a história real das guerras
do século 20: o Big Brother, aqui chamado de Grande Líder e sua milícia
de “pacificadores”, mais a palavra de ordem de Franco antes de acionar o
garrote vil, traduzida literalmente, “Viva la muerte!”.
Os
contatos com a história recente do Brasil são muitos, como o slogan oficial,
sobre a foto do Grande Líder: “O enviado de Deus protege o Brasil do caos”. Substitua
caos por “comunismo” e terá a impressão de um déjà-vu. Mas a ação do
vigilante justiceiro não passava em branco nas camadas inferiores,
economicamente, da população, que buscava a proteção não do Grande Líder, mas
de uma entidade espiritual em quem pudesse confiar:
–
Arrependam-se! O fim está perto! O Anhangá é o Cavaleiro do Apocalipse trazido
pelo senhor Jesus!
Os
velhos professores “aposentados” pelo Grande Líder sabiam que Anhangá é um
servo de Yurupari, o Legislador divinizado, que se encontra como base em todas
as religiões e mitos ancestrais. Tempos medonhos pedem tempos de mudança.
Heitor Navarro percebeu isso.
A
literatura de Ricardo Kaate Lima é mais que mero entretenimento: é uma
prospecção profunda e simbólica do que nos espera no breve tempo que ainda
temos pela frente.
A Lança de Anhangá (São Paulo: Cachalote, 2024), de Ricardo Kaate Lima, foi lançado no segundo semestre do ano passado, e vem obtendo excelente recepção crítica. No Brasil.
quinta-feira, 3 de abril de 2025
A poesia é necessária?
A baforada do vazio
(fragmento de O drone de Yebá Buró)
Thiago Roney
Antes o mundo não existia
resistia o puro silêncio alado,
sempre incalculável,
do despovoado.
Antes o eu das coisas não existia
subsistia a poesia despida de fome,
sempre incessante,
do sem nome.
Antes o tempo não existia
persistia o instante bruto e contido,
sempre imóvel,
do infinito.
Antes o verbo não existia
insistia a voz muda e desmedida,
sempre ininterrupta,
do não-nascido.
Antes a forma não existia
remanescia o conjunto aliviado
sempre indizível,
do desabitado.
quarta-feira, 2 de abril de 2025
Literatura de autoria indígena no Amazonas
terça-feira, 1 de abril de 2025
Reflexões de Idalina
Pedro Lucas Lindoso
Tia
Idalina me liga via whatsapp para me informar que desistiu de ir passear em
Nova Iorque. Apesar de gostar muito da cidade, disse que é um desconforto usar
banheiro por lá. Não tem bidé. Muito menos ducha.
Idalina
não tem dúvidas de que o papel higiênico é a opção mais comum e prática. Mas
discorda que seja totalmente eficaz na limpeza completa. Tem certeza que a
relação do papel com as pessoas é ambivalente. Concorda que é prático e
facilmente acessível. Mas gera uma montanha de resíduos. Quem nunca se pegou
pensando na quantidade de árvores que se vão para manter esse hábito no mundo
inteiro?
Advoga
que o bidé é uma excelente opção para a limpeza completa e suave. Ora, o uso do
bidé ajuda a limpar a área com água, sendo muito mais higiênico e confortável.
Mas os americanos não usam. Uma das grandes contribuições dos franceses para a
humanidade. Mas até eles deixaram de usar. Não se sabe o porquê. Os americanos
com certeza não utilizam bidé em razão da colonização puritana. Os puritanos
emigrados da Inglaterra eram moralistas rigorosos na aplicação de ideias e de
costumes. Não usariam bidés, por certo. Titia tem umas teorias próprias e
poucos ortodoxas. Mas deve ter razão.
E por que
não adotam a ducha? É outra opção que permite a limpeza com água. É mais fácil
de instalar em algumas configurações de banheiros.
Idalina
ouviu dizer que no interior usam sabugo de milho e até jornal. Um horror. O uso
do jornal pode ser arriscado devido à tinta e ao papel áspero. Já o sabugo de
milho pode ser desconfortável. Mas é certo que a escolha do método vai depender
das preferências pessoais e, claro, da disponibilidade dos materiais.
Disse à
Tia Idalina que uma boa opção são os lenços umedecidos. Oferece uma limpeza
mais suave e eficaz que o papel higiênico seco. Adverti titia de que ela deve
escolher lenços que sejam biodegradáveis. Não podemos esquecer nossos
princípios básicos de Ecologia. E ainda lhe disse que deve escolher lenços que
não contenham produtos químicos irritantes.
Idalina
vai reconsiderar e estudar a possibilidade de usar lenços umedecidos. Coisa que
não existia na sua juventude.
Titia
não tem dúvidas de que o uso da água, tanto no bidé como na ducha, são os mais
higiênicos. E acrescenta: a ducha e o bidé são símbolos de um cuidado refinado.
Oferecem uma abordagem mais delicada e definitivamente mais eficaz. Para
Idalina a sensação de água fresca é revigorante e sinônimo de limpeza
verdadeira.
Finalmente
Idalina não abre mão de seu conforto e praticidade. E lembra-nos que a higiene
é um ato de amor, por nós e pelo planeta.
segunda-feira, 31 de março de 2025
As diversas escritas de Zemaria Pinto
domingo, 30 de março de 2025
quinta-feira, 27 de março de 2025
A poesia é necessária?
Poemas para a minha rua – XXI
Sarah Rodrigues
E quando essa rua assoma
meus canteiros multicores,
há serenatas de aromas
na madrugada das flores...
Neste cenário perfeito
que a noite serena espreita,
a sombra parece um leito
onde o silêncio se deita.
terça-feira, 25 de março de 2025
Por um mundo justo e acolhedor
Pedro Lucas Lindoso
Vivemos em tempos difíceis. A globalização e a internet
democratizaram as informações. Mas nem todos têm conhecimento e ética em
processá-las corretamente. O mundo está dividido. O mais grave é o afloramento
da xenofobia, racismo e intolerância.
A nossa Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, reza expressamente
que todos são iguais perante a lei. Homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações. Garante aos brasileiros e aos estrangeiros no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade.
Folheando e relendo pela enésima vez a nossa Carta Maior, em
especial o artigo sobre igualdade, um eco de silêncio ressoava no meu âmago.
Era o silêncio daqueles que, por medo ou cansaço, não se manifestam contra as
desigualdades que ainda persistem. O racismo, a xenofobia, a intolerância —
essas chagas sociais ainda marcam nossa sociedade. Muitas vezes, as pessoas
preferem se calar, acreditando que a mudança é impossível, que o preconceito é
um mal inerente à natureza humana.
Lembrei-me de uma conversa que tive com um imigrante em
Brasília, quando da minha experiência no Ministério da Justiça. Contou-me sobre
as dificuldades que enfrentava ao se estabelecer no Brasil. O olhar triste
enquanto falava sobre discriminação e desprezo me fez perceber o quão doloroso
é viver em um mundo onde as diferenças são vistas como fraquezas. O que deveria
ser uma celebração da diversidade frequentemente se transforma em um campo de
batalha de estereótipos e preconceitos.
É fácil se perder na rotina, esquecer que cada um de nós carrega
uma história única. Precisamos, no entanto, nos lembrar de que o verdadeiro
progresso começa com pequenos gestos. Um sorriso, uma palavra de apoio, um ato
de solidariedade podem ser o primeiro passo para desconstruir as barreiras que
nos separam.
O pôr do sol em nossa capital é sempre deslumbrante. Da janela
do Ministério da Justiça o sol se punha no horizonte, tingindo o céu de cores
vibrantes, como se a natureza estivesse nos dizendo que a beleza está na
diversidade. E ali, naquele instante, percebi que o futuro é moldado por nossas
ações, por nossas escolhas.
Dizer não ao racismo e à xenofobia é um ato de coragem, mas
também de amor. Amor por nós mesmos e por todos que compartilham este mundo.
Que possamos ser, todos os dias, agentes de mudança, ecoando a mensagem de que
a diversidade é o que nos torna humanos e que juntos podemos construir um mundo
mais justo e acolhedor.
domingo, 23 de março de 2025
quinta-feira, 20 de março de 2025
A poesia é necessária?
almoço de domingo
Cynthia Teixeira
é domingo, leve como o silêncio.
um cheiro forte de desassossego de pai-morto e mãe abatida.
recordo meu passado
de ser sorridente e concreto.
– eu era viva em outro lugar,
rodeada de gente ao meu lado.
mas, que venha este velho almoço,
que eu escolhi e que me escolheu.
o vidro de sal e o pote de farinha,
há neles certa pena?
irrita-me a força de gente mais do que eu,
a potência da colher batendo no prato.
irrita-me o vigor que me exige a faca no cortar.
sim, e ainda há um festivo burburinho entre mesa e cadeira,
entre prato e colher,
entre garfo e faca.
e todos eles zombam de mim,
essas coisas da mesa do almoço de domingo, mais do que eu,
que sou menos gente do que eles, que não são gente.
e todos zombam, porque só o que me resta é bufar.
terça-feira, 18 de março de 2025
Natureza e fraternidade
Pedro Lucas Lindoso
A Campanha da Fraternidade é uma iniciativa da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que ocorre todos os anos durante a
Quaresma. Tem como objetivo promover reflexões e ações em torno de temas sociais,
éticos e espirituais. Este ano o tema é Fraternidade e Ecologia Integral.
Dom Leonardo Steiner, nosso Arcebispo aqui em Manaus, está bastante
engajado. É o primeiro Cardeal da Amazónia. Ele destaca que a preservação da
natureza é essencial para garantir um futuro digno para todas as pessoas,
especialmente as mais vulneráveis.
Dom Leonardo é Franciscano.
Todos sabemos que São Francisco de Assis, padroeiro da Ecologia, amava e
até falava com os animais. Principalmente os passarinhos.
Em um mundo marcado pelo consumo desenfreado e a exploração
desenfreada dos recursos naturais, a Campanha da Fraternidade nos convoca a um
despertar. A mensagem ecoada por Dom Leonardo Steiner ressoa como um chamado à
responsabilidade coletiva: cuidar da Terra é um ato de fraternidade.
Quando caminhamos por nossa floresta, ouvimos o canto dos
pássaros e admiramos a beleza das árvores, dos igapós, da nossa fauna. Cada
elemento da natureza é um irmão, uma irmã. São Francisco assim os chamava. No
entanto, ao olharmos ao nosso redor, muitas vezes nos deparamos com a realidade
da destruição: florestas desmatadas, rios poluídos e espécies ameaçadas de
extinção. É um grito silencioso da Terra pedindo socorro.
Dom Leonardo nos lembra que a fraternidade não é apenas um
ideal, mas uma prática. É agir em solidariedade, é reconhecer que nossas vidas
estão entrelaçadas. A natureza nos oferece tudo o que precisamos, mas em troca,
devemos cuidar dela. O cuidado com o meio ambiente é um reflexo do amor ao
próximo. Quando protegemos a natureza, garantimos um futuro mais justo e
sustentável para todos.
Que ao cuidar da Terra possamos também cultivar a
fraternidade, reconhecendo que todos fazemos parte de uma mesma criação.
A natureza, em sua sabedoria, nos ensina que a vida é um dom
precioso que deve ser respeitado e preservado. Que possamos, juntos, ser a voz
que clama por um mundo mais justo, onde a fraternidade e o cuidado com a
criação andem lado a lado. É hora de agir, de amar e de cuidar. É hora de ser
verdadeiramente irmãos e irmãs da Terra.
domingo, 16 de março de 2025
quinta-feira, 13 de março de 2025
A poesia é necessária?
Não vou dar voz
Vanessa Almeida
Aos abraços que torturam,
aos beijos que ferem,
às bocas que maltratam,
às pernas que enlaçam e
às mãos que afagam duramente.
Não vou dar voz.
terça-feira, 11 de março de 2025
Descer para BC
Pedro Lucas Lindoso
Recebi
um whatsapp de tia Idalina apavorada. Titia me contou que teve um terrível
pesadelo. No sonho, Manaus, aliás toda a Amazônia, era invadida por
extraterrestres.
Transformavam
a floresta amazônica no maior jardim botânico das galáxias. Manaus se tornaria
um grande cassino interplanetário.
Nós, os
habitantes de Manaus, poderíamos escolher morar na Riviera de Gaza. Aos paraenses foi dada a opção de colonizar a
Groelândia. Muito frio por lá.
Entretanto, todos os colonizadores vindos do Pará teriam direito a
tacacá e maniçoba.
Mas que
show da Xuxa é esse, tia Idalina? Ela me disse que o último pesadelo que teve
foi nos anos de 1960. Um alienígena queria transformar a região amazônica num
grande lago. Uma loucura. Titia acordou suada e ofegante.
Depois
criaram a Zona Franca. Vendiam de um tudo que era importado no centro de
Manaus.
Foi
nessa época que Idalina virou muambeira. Levava para Copacabana dúzias de calças
Lee, dezenas de relógios e baralhos importados, diversos lenços de seda, roupas
indianas e máquinas de retrato Cannon. Tinha alfândega, mas um sobrinho dela
era inspetor. Então, sem problemas.
Seu
apartamento em Copacabana era uma festa. Os clientes ainda tinham direito a
xarope de guaraná gaseificado. Uma engenhoca onde se colocava gás no xarope,
também adquirida na Zona Franca. Vendia aquilo também. Mas só por encomenda.
Ficou tão rica que comprou um apartamento em Miami.
Mas
agora não sabia o que me dizer. Estava preocupada conosco. O sonho era muito
real. Ainda bem que morava no BC. Teria titia se mudado para Balneário
Camboriú? Não BC é Balneário Copacabana, explicou-me.
Disse
ainda que os extraterrestres eram comandados por um velhote cínico, louro
desbotado. Falavam Inglês.
Transformavam
o Teatro Amazonas em cassino, o Palácio da Justiça em boate. O porto virou uma
fantástica marina. O Palácio Rio Negro virou um hotel butique. O Mercadão, um
shopping center.
Além da
Riviera de Gaza, os amazonenses poderiam optar pelo projeto de colonização do
Planeta Marte.
Ainda
bem que foi só um pesadelo. Se fosse verdade iria aceitar o convite de Idalina.
Pegar um avião e descer. Descer para BC.
domingo, 9 de março de 2025
sexta-feira, 7 de março de 2025
Entrevista ao Jornal do Commercio – lançamento de "Folia no Seringal"
Entrevistador:
Evaldo Ferreira
Entrevistado:
Zemaria Pinto
1 – Por que você usou o Clube da
Madrugada como referência para o antes, o durante e o depois da literatura amazonense?
R: Na perspectiva que temos hoje, 70
anos depois da fundação do Clube da Madrugada, é que este é um divisor de águas
na literatura feita no Amazonas: há um “antes” e um “depois” do Clube. E
durante 30 ou 40 anos, o tempo da história do Clube, houve um “durante”. O
Antísthenes Pinto dizia que enquanto ele vivesse o Clube existiria. Jorge Tufic
tinha uma posição similar, publicando livros com o selo do Clube até o fim.
Então, peguei essa ideia e coloquei no livro.
2 – O Amazonas tem uma literatura com
características próprias? Se sim, quem seriam seus expoentes?
R: A literatura feita no Amazonas é a
literatura feita no Brasil. Fazemos parte dela, ainda que alguns façam “bico”
para o nosso “regionalismo”. Márcio Souza deixou-nos como legado, pouco antes
de sua morte, um livro pequeno no tamanho mas gigante no conteúdo – Amazônia, Regional e Universal. E ele
começa com a frase clássica de Tolstoi, que cito de memória: “se queres ser
universal começa por pintar a tua aldeia”. Um francês, um inglês ou mesmo um
paulista jamais diria isso. E Tolstoi era então um periférico. Não se iluda: a
padronização é o fim da arte. Sempre que tentaram padronizar o fazer estético
deram um passo para trás na produção da arte.
3 – O Brasil tem ícones nos vários
estilos literários. No Amazonas, quem seriam os ícones: na crônica, no conto,
na poesia e no romance?
R: Essa pergunta repete a anterior.
Desculpe-me. Você sabe quem foi Coelho Neto? Se não, vou lhe dizer quem é
Coelho Neto agora: um escritor esquecido. E já foi considerado um monstro
sagrado, que conviveu com monstros “menores” que ele, como Machado de Assis e
Olavo Bilac. A história da literatura mundial é cheia de exemplos desse tipo.
Shakespeare passou duzentos anos no esquecimento até ser resgatado. Gregório de
Matos, o “Boca do inferno”, morreu no final do século 17 e somente no século 20
se teve notícias dele. A vida é dura, meu caro. Inclusive para os ícones e
canonizados.
4 – O que acha dos(as) escritores(as)
ditos(as) ‘marginais’, que buscam um lugar à sombra, ou que até mesmo preferem
continuar ‘marginais’?
R: A história dessa tendência
“marginal” tem séculos, mas vamos falar do Brasil, segunda metade do século 20,
quando surge uma poesia marginal muito forte, mas também um cinema marginal, uma
música marginal, um teatro marginal etc. Eu conto isso no ensaio sobre os anões
de Márcia Antonelli. Resumo da ópera: marginal é tudo o que o mercado ainda
não absorveu. Quer um exemplo de marginal clássico? Lima Barreto. Hoje, ele
seria um respeitável acadêmico. De minha parte, eu admiro os que assim se
autoproclamam. Sempre fui admirador dos marginais brasileiros, mas tem um
amazonense que é um ícone do movimento há 50 anos: Simão Pessoa, na persona de
quem abraço a todos os marginais das novas gerações.
5 – Quem é, e onde se enquadra o
escritor Zemaria Pinto?
R: Coloco-me como um trabalhador. Eu
não escrevo por reconhecimento ou cargos. Eu escrevo porque tenho uma compulsão
por escrever e isso me ajuda a me manter vivo. E eu me sinto útil. Depois de 28
livros (e mais um no prelo), só penso em organizar minha poesia completa e meu
teatro completo. Com que finalidade, ainda não tenho certeza.
6 – Hoje, vivos, quem você destaca na
literatura amazonense, entre 50+ e jovens iniciantes?
R: Não destaco ninguém, para destacar
a todos. A vida literária não é uma batalha. Particularmente, procuro ser amigo
de todos, embora aqui e ali receba umas pedradas. Mas tenho sobrevivido. Agora,
é preciso entender que, fora da iconicidade (existe isso?) e do cânone, e
deixando de lado o fantasma de Coelho Neto, o futuro só acontecerá quando
estivermos todos irremediavelmente mortos.
7 – Por que esse título ‘Folia no
seringal’ e para qual tipo de leitor seu livro é indicado?
R: “Folia no seringal:
alegoria e paródia em O amante das
amazonas”, de Rogel Samuel. É o título de um dos ensaios pós-Madrugada. Uma
referência a “As folias do látex”, peça de Márcio Souza, e também a Mikahil
Bakhtin, teórico da carnavalização. Só que para ler Rogel eu não uso Bakhtin,
preferi o Joãosinho Trinta.
Quanto ao leitor, eu indicaria, em
primeiro lugar, aos alunos de Literatura. Depois, às pessoas que gostam de
literatura, ainda que não do ponto de vista técnico. Em terceiro lugar, eu indicaria
para quem nunca leu um livro: quem sabe ela encontre uma razão de viver...
quinta-feira, 6 de março de 2025
A poesia é necessária?
O estupro
Dani Colares
Numa rua deserta
De uma hora qualquer
Abriram o meu peito
E estupraram o meu coração
Amassaram-no, pisaram-no
Foderam sem piedade
Eu gritava e ninguém ouvia
E enquanto me segurava,
Eu implorava para que o arrancasse de uma vez
Cuspiu-me na cara
As lágrimas formaram crateras em meu rosto
E buracos no chão
Eu carregava a dor que asfixia,
que se materializa, aprisiona,
vomita, grita e implora
A dor que provoca a inércia de morte
Meu rosto, transfigurado de dor
Se contentava a olhar o nada
Fiquei ali, nua na rua imunda
Sem dignidade, força ou identidade
Vendo meus sentimentos jogados
Por todos os lados no asfalto
E assim, de peito aberto
Com saliva, sangue e sêmen
Levantei-me
Metade vivo, metade morto.
E o bandido? Solto.
quarta-feira, 5 de março de 2025
Folia no Seringal – lançamento
Zemaria Pinto
Começo
agradecendo a presença de todos: a família – esposa, filhas, netas e irmãs; os
parceiros Mauri Mrq e Tenório Telles; o time da Valer – Isaac Maciel, Neiza
Teixeira, Bruna Chagas; amigos velhos, ex-alunos, pessoas que estou conhecendo
hoje... E destaco ainda a presença do mestre Marcos Frederico Krüger, e do
nosso decano Elson Farias, em cujas personas cumprimento a todos os presentes.
Num hipotético país parlamentarista das letras, o Marcos seria o primeiro
ministro e o Elson, o presidente.
Vigésimo
oitavo livro publicado, ainda não me acostumei com o estresse dos lançamentos,
e às portas dos setenta anos, tomo o cuidado de trazer estas breves palavras
pré-escritas, para não correr o risco de gaguejar ou de simplesmente esquecer –
não só o que ia falar, mas o que estou mesmo fazendo aqui?...
E olha
que setenta anos não é pra qualquer um, que o digam os meus amigos Antônio
Paulo Graça, Anibal Beça, Sérgio Luiz Pereira... e Torquato Neto, Paulo
Leminski, Ana Cristina César... e Glauber Rocha, Raul Seixas, Sergio Sampaio,
Cazuza... e Jimi Hendrix, Janis Joplin, Amy Winehouse... Mas, de uma coisa
fiquem certos: com a chegada da velhice, nós aprendemos que não sabemos nada do
que pensávamos que sabíamos quando jovens. Por favor, não me cancelem, isto não
é etarismo; é apenas uma autocrítica. Se não, vejam.
![]() |
Professora Neiza Teixeira, que conduziu o evento. |
Entre
os 15 e os 17 anos, estudei o Científico, equivalente ao ensino médio de hoje,
no Colégio Estadual (ou simplesmente Estadual). Ficava vendo de longe os
componentes do Clube da Madrugada que frequentavam o Café do Pina, na praça em
frente – a da Polícia. Moleques, eu e Geraldo dos Anjos ficávamos horas a falar
mal dos “funcionários públicos da literatura amazonense”. Estúpidos, nós dois,
não demoraria muito para tomarmos consciência dessa estupidez. Mas, a juventude,
vocês sabem, não acaba aos 17 anos... É um processo. E de repente vem a
artrose, a artrite, a arritmia, a glicose, as viroses a pressão alta, a pressão
baixa, a falta de... sezão... E estamos irremediavelmente velhos.
Folia
no seringal é um
balanço da minha aventura como ensaísta, reunindo doze exemplares da minha
produção no gênero, desde “Maranhão Sobrinho, o místico de Satã”, publicado em
1999, como prefácio de Papéis Velhos... roídos pela traça do Símbolo, na
histórica Coleção Resgate, coordenada por esse mítico guerreiro das Letras
amazônicas, Tenório Telles, até textos escritos nesta década, vinte e tantos
anos passados. E tudo tendo como eixo o Clube da Madrugada, fundado em 1954.
Com este livro, celebramos os 70 anos do Clube.
Folia
no seringal faz um
passeio pela trajetória do Clube, que é o caminho traçado pela literatura feita
no Amazonas, mostrando que há um antes e um depois do Clube da
Madrugada, sendo o durante a própria existência do Clube. Comecemos pelo
princípio.
![]() |
Mauri Mrq, músico e compositor. |
Antes – o ensaio de abertura, “A paisagem
na literatura de viajantes e nativos”, começa com Frei Gaspar de Carvajal, que
escreveu, no seu relato, Descobrimento
do rio de Orellana, a nossa certidão de nascimento; e faz um breve
inventário dos viajantes e nativos que tomaram a paisagem como personagem:
Cristóbal de Acuña (Novo descobrimento
do grande rio das Amazonas), Henrique João Wilkens, o poeta do genocídio (Muraida), Julio Verne (A jangada, 800 léguas pelo Amazonas),
Conan Doyle (O mundo perdido), Raul
Pompeia, autor de O Ateneu, escreveu Uma tragédia no Amazonas, com 17 anos;
Euclides da Cunha (que estava escrevendo Um
paraíso perdido quando foi parado pela bala de um desafeto); Ferreira de
Castro (e o superestimado A selva);
e os amazonenses Octavio Sarmento (A
Uiara) e Violeta Branca (Ritmos de
inquieta alegria).
Destaco,
no já citado “Maranhão Sobrinho, o místico de Satã”, o poeta que, vivendo em
Manaus, na minha Cachoeirinha, e aqui morrendo, foi o autor que logrou maior
reconhecimento nacional na era pré-Madrugada. Nenhuma antologia séria do
Simbolismo brasileiro o ignora.
O
terceiro ensaio, fechando esse grupo, diz ao que veio já no título:
“Romancistas e contistas: a literatura de ficção na Academia Amazonense de
Letras”. Porque sempre tem um incomodado a reclamar que a Academia tem
escritores de menos. E é verdade, mas isso não chega a ser nenhuma catástrofe,
porque os escritores da AAL dominam outros saberes, além da literatura de
ficção. Vejam. Em cem anos de existência, 1918-2018, contam-se 15 ficcionistas,
em um total de 148 acadêmicos; 10%, portanto; o que significa que os outros 90%
dominam outros saberes. E escrevem livros sobre eles.
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Tenório Telles, escritor e crítico literário. |
Clube
da Madrugada – o
ensaio que abre este capítulo não se isenta de polêmica, em três frentes; duas afirmações
e uma pergunta. Primeira afirmação: o Clube da Madrugada não se constituiu como
um movimento, uma vez que não tinha um programa estético, e sim político. Segunda
afirmação: o Clube da Madrugada não foi o Modernismo no Amazonas. E a pergunta:
até onde vai, cronologicamente, o Clube da Madrugada? Costuma-se dizer, eu
mesmo já o disse várias vezes, que o Clube da Madrugada foi fruto de uma
geração excepcional. Na verdade, foram pelo menos três gerações.
Na
sequência, quatro ensaios sobre quatro autores emblemáticos do Clube: Luiz
Bacellar (Frauta de barro), Astrid
Cabral (Alameda), Elson Farias (Memórias literárias) e Ernesto Penafort
(uma visão geral de sua obra, mostrando que havia muita poesia além do azul).
Esses quatro autores representam as mais de duas dezenas de autores que
gravitaram em torno do Clube.
Eu
lembro que, há exatos 10 anos, em um 9 de março, Eu e o Mauri, juntamente com o
Tenório, o Marcos Frederico, o Alisson, a Nícia e outros amigos, lançávamos na
sede da Academia o livro-objeto Lira da
Madrugada, homenagem aos 60 anos do Clube – aliás, não fomos eu e o Mauri, mas sim o Mauri e eu. O Mauri
cantou, tocou, fotografou, produziu, deu palpite em tudo. Eu só desorganizei as
ideias poéticas, para dar um toque de não sei quê. Parece que faz tanto tempo: até
o conceito de livro-objeto, nestes tempos virtuais, fica difícil de entender.
Vou tentar: eram dois livros e um CD. O CD era um disquinho compacto, um
compact disk... É melhor parar por aqui...
Depois – reunindo três ensaios de autores
que surgiram após o auge do Clube da Madrugada, comenta-se a dramaturgia
amazônica de Marcio Souza – A paixão de
Ajuricaba, Jurupari, a guerra dos
sexos, A maravilhosa história do
Sapo Tarô-Bequê, As Folias do Látex,
Tem piranha no pirarucu e muitas
outras; o romance histórico de Rogel Samuel, O amante das Amazonas; e
três títulos da escritora Márcia Antonelli, que tem a figura de um adulto
portador de nanismo como protagonista e como isso se desenvolve entre o grotesco,
o fantástico e o marginal: são eles O
enterro do anão, O anão do açougue e
O anão trompetista. De novo, quero
deixar bem claro que isso não é capacitismo, até porque os anões de Márcia,
além de protagonistas, são personagens com uma carga trágica muito forte. E foi
isso o que me encantou neles, além da já conhecida capacidade da autora de
engendrar tramas fantásticas. Antonelli representa, no livro, a literatura
produzida no Amazonas neste século 21. É, portanto, o que há de mais novo em
nossa literatura.
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Zemaria Pinto. |
Fechando
o capítulo, um ensaio – “Miniconto, microconto, nanoconto, contos são?” – onde
se discute uma tendência minimalista do conto contemporâneo, que chega a usar os
muros da cidade como veículos para o texto, lembrando a Poesia de Muro, teorizada
pelo poeta madrugadense Jorge Tufic.
Por
fim, sempre me têm perguntado “por que Folia no seringal”? Talvez
estranhando um súbito relaxamento na sisudez com que se trata a literatura
sobre a época. Lembro o amigo Márcio Souza, a quem presto todas as reverências
que um discípulo deve ao mestre: a peça As folias do látex, encenada
pela primeira vez em 1976, me deu a senha. Então, eu li o lírico romance do
amigo Rogel Samuel como se fora um desfile carnavalesco, trocando o circunspecto
Bakhtin, teórico da carnavalização, por um glamoroso e feliz Joãosinho Trinta.
Evoé!
O livro é de vocês!
Fotos: diversos autores; obrigado a todos.