Zemaria Pinto
Na Veja, o Jerônimo Teixeira está para a literatura assim como a Isabela Boscov para o cinema. E nas mesmas condições: sob suspeita. Desconfie de tudo o que o Teixeira escreve. Aliás, desconfie da Veja. Autor de dois livros de contos muito bem recebidos pela crítica (da Veja, claro), Teixeira faz parte daqueles críticos que Harold Bloom enquadra na “escola do ressentimento”, que pode ser ilustrada e simplificada no seguinte silogismo: “mamãe me acha lindo; logo, você é feio”.
Na última Veja, para esculhambar autores que lhe fazem sombra, Teixeira resolveu ressuscitar um conceito equivocado, que estudos sérios dão como mera curiosidade arqueológica: o regionalismo. Sua defesa é de uma simploriedade que tangencia a ignomínia: “o próprio fato de tantos autores se voltarem contra o conceito atesta que, de alguma forma, ele sobrevive”.
Vamos lá: regionalismo foi o nome dado pela crítica a uma literatura que se voltava para o interior do país, desde José de Alencar e Bernardo Guimarães, passando por Graça Aranha e Alberto Rangel, até o boom da literatura neorrealista, a partir dos anos 1930: Érico Veríssimo, Jorge Amado, José Lins do Rego e os incomparáveis Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. O nome de Veríssimo, gaúcho que nem o Teixeira, é o primeiro da lista só para anular outro rótulo equivocado: o “romance nordestino”. Aliás, Rosa era mineiro. E por que foi chamado de regionalismo? Porque, com raríssimas exceções, a ficção brasileira retratava o perímetro urbano, mais especificamente, a capital e sua locomotiva financeira: Rio de Janeiro e São Paulo. Lima Barreto, que escrevia sobre os subúrbios cariocas, foi solenemente ignorado em vida. Seus críticos não achavam nenhuma graça naqueles pobres-diabos que ele revelava.
Os defensores da existência hoje do regionalismo – pois os há, além do Teixeira, da mesma forma que há nazistas, fascistas, stalinistas, maoístas etc. – empregam o termo de forma depreciativa, justificando sua classificação pelo uso de uma linguagem própria de uma região, um subdialeto. Ora, só se pode achar que a linguagem baiana, por exemplo, é “regional” se comparada a outra. A comparação será com o carioquês e o paulitês, claro. Aliás, já perceberam como cariocas e paulistas falam de maneira diferente entre si – além de serem ambos diferentes de qualquer outra região do país? Falácia. Outra característica: se o sujeito escrever sobre o Amazonas e falar da floresta é regionalista. Se for pernambucano e falar dos costumes sertanejos é regionalista. É o que os parvos chamam de “cor local”. Mais falácia. Diz-se também que regionalista é a literatura que põe seu foco em determinada região do Brasil. Outra falácia, conforme demonstraremos a seguir.
Pelas características mais comuns do regionalismo, acima elencadas, eu afirmo solenemente que ninguém é mais regionalista em toda a literatura brasileira que o senhor Joaquim Maria Machado de Assis, ele mesmo! Pois, pasmem: toda a obra de Machado de Assis passa-se na cidade do Rio de Janeiro e arredores. Nada mais regionalista, portanto: pela linguagem, pelos usos e costumes, pelo foco geográfico. Pobre Machado! A que te reduziram...
Referindo-se ao recém-lançado livro de contos de Milton Hatoum, A cidade ilhada, Teixeira põe um ovo em pé: “o título faz referência a Manaus”. É o suficiente para a adjetivação maldita: regionalista! Mais: a matéria traz uma ilustração de Hatoum caricaturado como um seringueiro... Ainda não li o livro, por isso não entro no mérito da crítica negativa que o Teixeira faz: “os contos de Hatoum são regulares na mediocridade”. Mas eu duvido que o autor dos já clássicos Relato de um certo oriente e Dois irmãos seja lido pelo obtuso Teixeira sem ressentimento.