Zemaria Pinto*
Li essa historinha em uma antologia japonesa
de contos para
crianças. Tentarei recontá-la,
condensando-a.
O aluno
pergunta:
– Mestre,
onde posso encontrar
o verdadeiro sentido
da existência?
Sem vacilar,
o mestre responde:
– O verdadeiro
sentido da existência
humana, gafanhoto, está na poesia.
O garoto
pensa alguns segundos.
Vai se afastando, retorna, titubeante:
– Desculpe-me, não consigo atinar...
– É simples:
se todos voltassem sua
atenção, pelo
menos algumas horas
por dia,
com sincera
dedicação, à poesia,
teríamos um mundo
com menos
espaço para a
violência, para
a poluição... E até
para a corrupção. As relações seriam mais
harmoniosas, baseadas na fraternidade, porque a poesia
não está apenas
nas palavras que se perdem no ar; ela está
nos gestos, nos olhares e em muitos outros
lugares: a poesia está no vento,
na chuva, no céu
estrelado, no pôr-do-sol, no correr do rio, na pluma que cai lentamente sobre
o asfalto da estrada... Ter os sentidos aguçados para perceber a poesia da natureza não nos faz melhores,
mas nos
faz mais conscientes
de nosso papel
como seres
humanos.
Não consegui deixar
de pensar naquele mestre
como um
haijin, um cultor da simplicidade poética
do haicai, para
quem tudo
é transitório, impermanente, efêmero: é preciso
cultivar o instante,
como a uma flor.
Só acrescentaria, fazendo graça, que os sentidos seriam mais bem explorados de forma
sinestésica: olhos para
comer, nariz para escutar, ouvidos para cheirar,
mãos para ver e língua para tatear...
Agora, com Folhas da selva em mãos, penso o quanto vale toda uma vida
dedicada integralmente à poesia. Aos 60 anos,
o poeta Anibal Beça
pode olhar para trás e avaliar, a partir de sua própria experiência,
se o velho mestre
tinha ou
não razão.
Reunindo a produção de haicais,
presentes em
sua obra
publicada em livro
desde Filhos da várzea,
de 1984, Folhas da selva é um livro novo, mesmo quando nos
deparamos com poemas
familiares, uma vez
que a disposição
é outra, sendo conseqüente
abstrair uma nova
sensação dessa nova
leitura. Os haicais
de No país
do carnaval e Dos olhos da amada, por exemplo, titulados e rimados, estão apropriadamente reunidos sob
o título geral
À maneira
de Guilherme de Almeida, num tributo
merecido àquele que
vulgarizou, no melhor sentido dessa palavra,
a prática do haicai
no Brasil. Os poemas de Mínima fratura, de
1987, também são
encontrados entre as Folhas da selva, dispersos, como
se houvessem sido tangidos pelo vento.
Ao leitor menos afeito à leitura da poesia
japonesa, termos como
haibun, senryu e renga podem soar estranhos. Então, o professor que mora em mim pede o teclado. Renga, a haijin Rosa
Clement explica, com muita propriedade,
na introdução a “Chá
das Quatro”, bela parceria com o poeta José Félix. Haibun é prosa poética, haicai em prosa ou haicai entremeado
com prosa.
Senryu é o haicai com
finalidade cômica.
Dadas as dicas, o leitor descubra por si mesmo o que afinal é poetrix. Voltei. Entendo ser
imprescindível a união
entre haicai
e humor, no que
este tem de graça,
leveza, presença de espírito. E aí
peço licença ao professor
– ou será que
ele voltou? – para
lembrar Octávio Paz,
para quem o bom haicai
divide-se em duas partes:
·
uma, que reflete a condição geral,
temporal e/ou
espacial do poema
– contendo em si
a idéia de eterno,
não no sentido
metafísico, mas
da repetição cotidiana,
por isso
eterna: uma flor, um pássaro, o nascer do sol, a lua cheia, uma formação de
nuvens;
·
outra, refletindo o instante, o efêmero
– a experiência jamais
sentida.
Uma parte
enunciativa ou descritiva; outra, inesperada,
relampejante. É isso que o haicai procura registrar: o agora em
contraponto com
o sempre. E se alguém mais atento estiver pensando que
eu usei contraponto
quando deveria ter
usado contraposição, esclareço que
foi de propósito – afinal
contraponto é justaposição
de vozes, sem
perda de harmonia.
“Folhas da selva”, a coleção que abre e dá título
ao livro de Anibal Beça,
transborda de exemplos
que ilustram essa “tese”:
Flauta na floresta –
o vento
sopra nos
furos
do bambu brocado.
O vento e a floresta representam a condição
geral, espacial
do poema, o sempre.
A música provocada pelo
vento nos furos do bambu
– a flauta – é o efêmero,
a experiência única,
o agora que
não se repetirá jamais.
Olhos
marejados –
saudade se
misturando
aos pingos da chuva.
Se o humor não transparece, fica a leveza,
o espírito do poeta
ao vivenciar aquela cena
sob a chuva,
o elemento espacial.
A abstração de que
é a saudade que
provoca aquela imagem única é, na verdade, uma quebra do distanciamento,
mas, ao mesmo
tempo, é um
exercício de autoironia.
Com Folhas da selva,
Anibal Beça encerra
um ciclo
que prenuncia outro,
pois a selva, assim como a relva, faz parte
da condição geral
do poema, do eterno
que se renova porque
se repete, folha a folha,
poema a poema,
até o infinito.
*Zemaria Pinto
é poeta e dramaturgo,
autor, entre
outros títulos,
de Música Para Surdos, Nós,
Medéia e Dabacuri. Ocupa, desde
2004, a cadeira nº 27 da Academia
Amazonense de Letras.