Em meio a tanta miséria intelectual, ganhei do amigo Luiz Bacellar um presente sublime: a honra de publicar três poemas inéditos seus – de uma vez. E quero divulgar o fato em primeiríssima mão (sei do cacófato) aqui, com você.
Em primeiro lugar, só para colocar a todos no mesmo nível (ó pedantismo, teu nome é professor!), vamos falar rapidamente sobre o haicai, uma forma poética tipicamente japonesa, surgida no século XVI, como um jogo de salão. Infelizmente, alguns haijins (é assim que se chamam os fazedores de haicais), maus poetas, continuam a tratar a forma como se fosse um mero jogo e não poesia.
Alguns pontos: o haicai não admite sentimentalismo – nada de dor de cotovelo ou de chifres. Sobretudo, o haicai não prescinde de uma boa dose de humor – não o humor cômico, cearense, zombeteiro, mas a graça, a presença de espírito. A relação com o zen-budismo, que, em sã consciência, nenhum haijin admite (para não misturar alhos com bugalhos, afinal poesia e religião não combinam), está nas raízes do haicai: tudo no mundo é transitório, impermanente, efêmero. Por outro lado, o zen não se admite como um ser isolado, mas como parte indissociável de um todo. Assim, podemos concluir que a característica primordial do haicai é a observação da natureza e seus ciclos essenciais: nascimento, vida, morte; primavera, verão, outono, inverno. Simples, não?
Mas vamos ao Bacellar, o primeiro a divulgar a forma no Amazonas, em seu livro Frauta de Barro, de 1963.
Luar de agosto.
No alheio telhado ao lado
concerto de gatos.
O primeiro poema descreve uma alegre fornicação felina. O luar de agosto nos informa que é noite de verão (para nós, amazônidas). Noite quente. O toque sutil ocorre em nominar a algazarra como “concerto”.
Búfalos na estrada.
A lua viaja nos
lombos da manada.
O segundo poema é de uma plasticidade extraordinária. Abstraia: uma viagem noturna de búfalos. As sombras negras se movimentam, levando com elas a lua “nos lombos da manada”. Podia ser um quadro de Hiroshige (informe-se).
Noite de piracema.
A lua indiscreta mostra
a rota do cardume.
O terceiro poema nasceu na minha frente, documentado na foto acima. De novo, a plasticidade ímpar: o cardume, de encontro à nascente, característica da piracema, brilha à luz da lua.
Os três poemas, você percebeu, são instantâneos que refletem o eternamente contínuo e o instante único, relampejante. Luar de agosto, búfalos na estrada, noite de piracema representam a condição geral (temporal e/ou espacial) do poema. Não há poesia, ou melhor, há apenas uma poesia natural. A poesia enquanto criação explode mesmo é na sequência das imagens, que mostram um momento único, fugaz.
O haicai é uma arte difícil dentro da sua simplicidade. Talvez por isso as crianças têm enorme facilidade para apreender o que os haicaístas chamam de “espírito do haicai”: uma poesia antiliterária, surpreendente como um artefato capaz de fazer brotar a beleza a partir da banal (e miserável) realidade cotidiana.
Em primeiro lugar, só para colocar a todos no mesmo nível (ó pedantismo, teu nome é professor!), vamos falar rapidamente sobre o haicai, uma forma poética tipicamente japonesa, surgida no século XVI, como um jogo de salão. Infelizmente, alguns haijins (é assim que se chamam os fazedores de haicais), maus poetas, continuam a tratar a forma como se fosse um mero jogo e não poesia.
Alguns pontos: o haicai não admite sentimentalismo – nada de dor de cotovelo ou de chifres. Sobretudo, o haicai não prescinde de uma boa dose de humor – não o humor cômico, cearense, zombeteiro, mas a graça, a presença de espírito. A relação com o zen-budismo, que, em sã consciência, nenhum haijin admite (para não misturar alhos com bugalhos, afinal poesia e religião não combinam), está nas raízes do haicai: tudo no mundo é transitório, impermanente, efêmero. Por outro lado, o zen não se admite como um ser isolado, mas como parte indissociável de um todo. Assim, podemos concluir que a característica primordial do haicai é a observação da natureza e seus ciclos essenciais: nascimento, vida, morte; primavera, verão, outono, inverno. Simples, não?
Mas vamos ao Bacellar, o primeiro a divulgar a forma no Amazonas, em seu livro Frauta de Barro, de 1963.
Luar de agosto.
No alheio telhado ao lado
concerto de gatos.
O primeiro poema descreve uma alegre fornicação felina. O luar de agosto nos informa que é noite de verão (para nós, amazônidas). Noite quente. O toque sutil ocorre em nominar a algazarra como “concerto”.
Búfalos na estrada.
A lua viaja nos
lombos da manada.
O segundo poema é de uma plasticidade extraordinária. Abstraia: uma viagem noturna de búfalos. As sombras negras se movimentam, levando com elas a lua “nos lombos da manada”. Podia ser um quadro de Hiroshige (informe-se).
Noite de piracema.
A lua indiscreta mostra
a rota do cardume.
O terceiro poema nasceu na minha frente, documentado na foto acima. De novo, a plasticidade ímpar: o cardume, de encontro à nascente, característica da piracema, brilha à luz da lua.
Os três poemas, você percebeu, são instantâneos que refletem o eternamente contínuo e o instante único, relampejante. Luar de agosto, búfalos na estrada, noite de piracema representam a condição geral (temporal e/ou espacial) do poema. Não há poesia, ou melhor, há apenas uma poesia natural. A poesia enquanto criação explode mesmo é na sequência das imagens, que mostram um momento único, fugaz.
O haicai é uma arte difícil dentro da sua simplicidade. Talvez por isso as crianças têm enorme facilidade para apreender o que os haicaístas chamam de “espírito do haicai”: uma poesia antiliterária, surpreendente como um artefato capaz de fazer brotar a beleza a partir da banal (e miserável) realidade cotidiana.
Publicado originalmente nO Malfazejo.
Os haicais de Bacellar, mais um quadro de Hiroshige, estarão na edição de 19/02 dO Fingidor.
Os haicais de Bacellar, mais um quadro de Hiroshige, estarão na edição de 19/02 dO Fingidor.