Zemaria Pinto
O homem ocupa o espaço
III
Mas como é difícil para esse Homem o retemperar-se: a leitura atenta do poema Amazônica mostra-nos a saga de um caboclo típico:
sem novidade
nasceu José
no tapiri.
Um bordado circular, em curtos versos de quatro sílabas – onde o antagonismo círculo X quadrado revela-se na formação daquele pela superposição infinita deste –, Amazônica é um tenso e cruel relato do cotidiano da região, ao longo de toda uma vida:
filho casado
morando ao lado
cheio de filhos
no mesmo estado
recomeçando.
A circularidade colocada de forma tão incisiva leva-nos a imaginar espelhos refletindo-se mutuamente, multiplicando uma única imagem ao infinito:
José espera
na beira dágua
no tapiri.
Como seus pais.
Como seu filho e os filhos de seu filho esperarão:
e a mãe-do-rio
de vez em quando
trazendo a enchente
que leva tudo.
“A vida é provavelmente redonda”, escrevera Van Gogh. Bachelard, ao citá-lo em A poética do espaço, inicia uma inebriante viagem rumo à certeza de que “o mundo é redondo em torno do ser redondo”. Para o
homem amazonense, sob a ótica de Alcides Werk, a vida é certamente redonda. José está velho, aposentado
doou seu sangue
para o futuro.
E o futuro era a estrada Transamazônica, sonho de redenção de tão curta existência que não passou mesmo de sonho, subproduto do “milagre brasileiro”, acalentado pela ditadura. José sonha que a estrada virá
com muita gente
nos caminhões
nos aviões
para rendê-lo
no antigo posto
que recebeu
dos ancestrais.
O posto de trabalhador que
cortou pau-rosa
juntou castanha
sangrou seringa
de sol a sol.
plantou mandioca
tratou da juta
todo molhado
por muitos anos.
Mas nada soube
de agricultura.
A monocultura extrativista, de caráter historicamente cíclico, do pau-rosa, da castanha, da borracha, da mandioca e da juta, tem mantido a economia amazonense no elo extremo da corrente de progresso que o país experimenta. Piscicultura é uma palavra que nunca fez parte da fala regional. Da mesma forma, as técnicas de agricultura e pecuária foram sempre mantidas distantes do caboclo, que nunca passou de mão de obra desqualificada, a serviço de coronéis que, sediados em Manaus, sonham com Paris. Ao homem resta crer que seu sofrimento é da “vontade de Deus”. Nesse sentido, a Zona Franca é um atalho para o paraíso.