Zemaria Pinto
O homem ocupa o espaço
V
Escrito muito tempo antes, “Das águas Grandes”, já incluído em Da noite do rio, prenunciava o delírio poético da mudança além da História:V
Quando eu for Presidente,
de amplos e amorosíssimos poderes
Convocarei um exército de anjos
para domar o rio e o desvario
dos prováveis dilúvios anuais.
Neste poema, porém, a ironia contida no sonho cede lugar à revolta do cidadão que conhece os mecanismos que o levariam a realizar seu sonho. E, transmudando-se em político vulgar, o poeta – longe da poesia que ensina a política ao povo que não lê poesia – imagina sua campanha, no habitual estilo de nossos maiores próceres:
E, de repente
me vem uma vontade provisória
de encher os bolsos de demagogia
entrar em cada casa com uma estória,
qualquer que seja – que não seja séria,
falar de tudo – menos de miséria,
prometer coisas que não cumprirei,
como se faz em tempo de eleições,
para que sejam menos infelizes
(enquanto o rio esconde as roça podres),
mastigando ilusões.
Porque para o caboclo – o José a esperar, como seus pais – o futuro é ontem, o passado é hoje.
Em “Das águas grandes”, além de seu forte conteúdo enquanto texto, destaca-se ainda a belíssima construção fônica da primeira parte do poema: a repetição de palavras cria uma tensão inusitada, que torna mais perceptível ainda o sentimento transmitido:
Na estreita maromba,
os bichos chorando de fome e de frio,
com medo do rio
com medo do rio que cresce outra vez.
com os olhos cansados de espanto e de mágoa
de ver tanta água
de ver tanta água
Tzvetan Todorov, citado por Maria Luiza Ramos no livro Fenomenologia da obra literária, propôs a ilustração sonora como um dos grupos dos fenômenos sonoros na literatura, descrevendo-a como “o caso em que as palavras, sem serem onomatopéias, evocam em nós a impressão auditiva que teríamos do fenômeno descrito”. Alcides Werk ilustra a passagem de um barco no rio cheio através de alterações e assonâncias que nos remetem ao fato:
O barco passando e a onda molhando
o menino molhado, na porta da frente.
O homem doente
deitado no rede
com os olhos cansados de espanto e de mágoa
de ver tanta água
de ver tanta água
bebendo do sangue, roendo as raízes
de tudo que fez.
Na estreita maromba,
os bichos chorando de fome e de frio
com medo do rio
com medo do rio que cresce outra vez.
Este trecho do poema poderia ser lido todo como se fosse composto por versos de cinco silabas:
O barco passando
e a onda molhando o
menino molhado,
na porta da frente.
com os olhos cansados
de espanto e de mágoa
bebendo do sangue
roendo as raízes
os bichos chorando
de fome e de frio
com medo do rio
que cresce outra vez
Esse ritmo é quebrado, entretanto, na sequência citada no inicio deste capitulo, quando, abruptamente, a musicalidade da passagem do barco é substituída pela veemência do discurso. A interrupção intencional da eurritmia é um recurso usado pelo autor chamando a atenção do leitor para um fato que julga particularmente importante no contexto.
Se a criação poética, como afirma Otávio Paz, em O arco e a lira, consiste na utilização do ritmo como agente de sedução, Alcides Werk é um sedutor. Invariavelmente, seus versos são lapidados com mestria, havendo predominância, nos poemas metrificados – à exceção dos sonetos, decassilábicos – de versos curtos, tetrassilábicos e redondilhas, típicos das canções populares. A propósito, Werk teve vários de seus poemas musicados por compositores amazonenses. “Trilha dágua” tem pelo menos duas versões – Pedro Amorim e Armando de Paula – e ilustra bem o que se afirma:
Nas margens, a prata
da lua escorrendo
pelas sapucaias,
pelos cajuranas,
pelos tarumãs,
sobre as garças brancas,
sobre as piaçocas,
sobre os jaburus.
As anáforas tornam-se um recurso se síntese: o poeta passeia pelo seu espaço como uma câmera cinematográfica, registrando instantâneos da vida amazônica. Ele prossegue, na trilha do casco, registrando
jacaré com filhos
gafanhotos verdes
peixes notívagos
lamparina acesa
cachorro latindo
minha roupa branca,
meu sapato novo
a cunhantã