Amigos do Fingidor

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A miragem elaborada – 7

Zemaria Pinto

O homem ocupa o espaço

VI



Esses registros de vida estão presentes desde os primeiros poemas de Da noite do rio até nos mais recentemente publicados. Mas é a partir da 1ª edição de Trilha dágua que Alcides Werk passa a mostrar-nos poemas onde a ocupação do espaço é plena e em constante movimento. O autor desapega-se da idealização pura e simples do espaço – onde os animais são apenas bichos e peixes – e passa a nomear seus ocupantes, como no já citado poema “Trilha dágua”. O poema “Tracajá”, por exemplo, descreve o movimento repleto de vitalidade de piranheiras, araçás, tracajás, onças, jacurarus, maracajás. É como se na sua poética construída ao sabor do tempo, Alcides Werk notasse, a partir de determinado momento, um movimento além das águas poderosas. É interessante observar, contudo, que a preocupação com a ecologia vai muito além do discurso fácil e emocionado de um modismo ocasional –redundante em si mesmo. O poema “Peixe-boi” fará qualquer ecologista de última hora torcer o nariz à crueldade com que é descrita a pesca àquele raro mamífero. Após expor com detalhes os preparativos indispensáveis, o “arremesso forte” e certeiro do arpão é seguido por um “navegar sem rumo” do animal arrastando o casco, enlouquecido pela dor.

                    Depois o cansaço nessa luta inútil
                    que eu sempre venci. Um pau molongó
                    em cada narina,
                    e tudo acabado.

A exclamação que o autor não explicita está clara. A alegria incontida, entretanto, não é pela vitória comum do homem. É uma outra alegria, quase infantil, primitiva:

                    Vou viver fartura,
                    vou guardar mixira,
                    vou ter peixe e boi.

Essa mesma motivação remete-nos a outro belo poema, “Facheação” , onde o objetivo da pesca é menos específico:

                    Há sempre pelas restingas
                    gerações de acaratingas
                    acomodados na areia,
                    acaris, bararuás
                    aracus, tucunarés
                    (por trás dos âmagos velhos,
                    guardando suas ninhadas)
                    e casais de apaiaris.

O espaço em movimento é enriquecido pela descrição dos objetos indispensáveis à faina:

                    E eu pego o rumo da beira,
                    com facho, poronga, arpão,
                    azagaia e jaticá.
                    No paneiro vai farinha,
                    vai sal, pimenta, limão,
                    língua de pirarucu,
                    cuia e pão de guaraná.

Não, os fonemas não têm cores como não as têm as vogais. Antes, traduzem alegria ou tristeza em acordo com o texto. Nas duas estrofes acima, o frio i e o sombrio u traduzem a mesma força telúrica dos fogosos o e a. Porque o objetivo desta facheação é mesmo a festa:

                    Depois, o rumo de casa:
                    preciso remar ligeiro,
                    que o povo tá me esperando
                    com a peixada pro ajuri.

O tema, aliás, repete-se, embora sem o mesmo brilho, no poema “Pescaria”, da antologia Poemas da água e da terra. A enumeração dos ocupantes do espaço prossegue na sua melodia inconfundível:

                    São piraíbas, jaús, dourados,
                    são pirararas de enormes panças,
                    são peixes-lenha e barbas-chatas,
                    piramutabas, capararis,

                    piracatingas e mandiis.

Da mesma forma, o poema “Jaraqui”, dado a público na 2ª edição de Trilha dágua, ensina a pesca àquele peixe, iguaria comum nas mesas da região:

                    jaraqui de piracema:
                    eis do pobre a mesa posta.

A técnica do distanciamento empregada por Alcides Werk nesses poemas visa afastar o envolvimento emocional do leitor com o fato em si: o poeta é o pescador. A recíproca dessa assertiva é falsa, entretanto, posto que o resultado – o pescador é o poeta – nos levaria perigosamente à catarse aristotélica e, consequentemente, ao discurso emocionado, dirigido ao leitor “pré-parado”. Aqui reside, aliás, o grande trunfo da poesia de Alcides Werk no que ela tem de mais regionalista: uma poesia feita de dentro para fora, viva, pulsante, vibrante. Não são meras lembranças do passado, saudades de um tempo perdido no tempo. Não. É a vida que flui, naturalmente, com a força arrebatadora das águas poderosas, destruindo o passado, preparando o futuro.

Mesmo nos poemas discursivos, como “O Ouro Rio Amana” (Trilha dágua, a partir da 3a edição), a catarse dá-se muito mais a partir da visão apaixonada do autor que do fato narrado: o poeta passa a sua indignação antes mesmo de provocá-la pela leitura mais atenta do poema.