Zemaria Pinto
O homem ocupa o espaço
VI
VI
Esses registros de vida estão presentes desde os primeiros poemas de Da noite do rio até nos mais recentemente publicados. Mas é a partir da 1ª edição de Trilha dágua que Alcides Werk passa a mostrar-nos poemas onde a ocupação do espaço é plena e em constante movimento. O autor desapega-se da idealização pura e simples do espaço – onde os animais são apenas bichos e peixes – e passa a nomear seus ocupantes, como no já citado poema “Trilha dágua”. O poema “Tracajá”, por exemplo, descreve o movimento repleto de vitalidade de piranheiras, araçás, tracajás, onças, jacurarus, maracajás. É como se na sua poética construída ao sabor do tempo, Alcides Werk notasse, a partir de determinado momento, um movimento além das águas poderosas. É interessante observar, contudo, que a preocupação com a ecologia vai muito além do discurso fácil e emocionado de um modismo ocasional –redundante em si mesmo. O poema “Peixe-boi” fará qualquer ecologista de última hora torcer o nariz à crueldade com que é descrita a pesca àquele raro mamífero. Após expor com detalhes os preparativos indispensáveis, o “arremesso forte” e certeiro do arpão é seguido por um “navegar sem rumo” do animal arrastando o casco, enlouquecido pela dor.
Depois o cansaço nessa luta inútil
que eu sempre venci. Um pau molongó
em cada narina,
e tudo acabado.
A exclamação que o autor não explicita está clara. A alegria incontida, entretanto, não é pela vitória comum do homem. É uma outra alegria, quase infantil, primitiva:
Vou viver fartura,
vou guardar mixira,
vou ter peixe e boi.
Essa mesma motivação remete-nos a outro belo poema, “Facheação” , onde o objetivo da pesca é menos específico:
Há sempre pelas restingas
gerações de acaratingas
acomodados na areia,
acaris, bararuás
aracus, tucunarés
(por trás dos âmagos velhos,
guardando suas ninhadas)
e casais de apaiaris.
O espaço em movimento é enriquecido pela descrição dos objetos indispensáveis à faina:
E eu pego o rumo da beira,
com facho, poronga, arpão,
azagaia e jaticá.
No paneiro vai farinha,
vai sal, pimenta, limão,
língua de pirarucu,
cuia e pão de guaraná.
Não, os fonemas não têm cores como não as têm as vogais. Antes, traduzem alegria ou tristeza em acordo com o texto. Nas duas estrofes acima, o frio i e o sombrio u traduzem a mesma força telúrica dos fogosos o e a. Porque o objetivo desta facheação é mesmo a festa:
Depois, o rumo de casa:
preciso remar ligeiro,
que o povo tá me esperando
com a peixada pro ajuri.
O tema, aliás, repete-se, embora sem o mesmo brilho, no poema “Pescaria”, da antologia Poemas da água e da terra. A enumeração dos ocupantes do espaço prossegue na sua melodia inconfundível:
São piraíbas, jaús, dourados,
são pirararas de enormes panças,
são peixes-lenha e barbas-chatas,
piramutabas, capararis,
piracatingas e mandiis.
Da mesma forma, o poema “Jaraqui”, dado a público na 2ª edição de Trilha dágua, ensina a pesca àquele peixe, iguaria comum nas mesas da região:
jaraqui de piracema:
eis do pobre a mesa posta.
A técnica do distanciamento empregada por Alcides Werk nesses poemas visa afastar o envolvimento emocional do leitor com o fato em si: o poeta é o pescador. A recíproca dessa assertiva é falsa, entretanto, posto que o resultado – o pescador é o poeta – nos levaria perigosamente à catarse aristotélica e, consequentemente, ao discurso emocionado, dirigido ao leitor “pré-parado”. Aqui reside, aliás, o grande trunfo da poesia de Alcides Werk no que ela tem de mais regionalista: uma poesia feita de dentro para fora, viva, pulsante, vibrante. Não são meras lembranças do passado, saudades de um tempo perdido no tempo. Não. É a vida que flui, naturalmente, com a força arrebatadora das águas poderosas, destruindo o passado, preparando o futuro.
Mesmo nos poemas discursivos, como “O Ouro Rio Amana” (Trilha dágua, a partir da 3a edição), a catarse dá-se muito mais a partir da visão apaixonada do autor que do fato narrado: o poeta passa a sua indignação antes mesmo de provocá-la pela leitura mais atenta do poema.