Amigos do Fingidor

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A fragmentação das torres – 1

Marco Adolfs


Vovó Lucinda vê o Cristo Redentor


“O Cristo está luminoso hoje... Lindo...”

– Abra a janela um pouco mais...Quero ver melhor o Cristo do Corcovado...

Enquanto a empregada se dirigia até a janela para fazer o que ela lhe havia pedido, em um esforço íntimo de todos os dias, esperava entender o que o tempo lhe havia feito. Pois não existia nem mais um espelho que lhe mostrasse o contrário. Sua cabeça – se é que existia ainda uma –, tentava aprisionar o vento. A mente tentando abrir caminho no nada. Na verdade não existia mais sequer um comando. Só sonhos esparsos. Um sonhar constante de fragmentos. Tudo era nebuloso. Pois ao mesmo tempo, nada existia. Em lampejos, relembrava o passado distante. Mas como falar direito com aquelas pessoas, se as articulações também não respondiam mais ao seu comando. Balbuciar, talvez. Então o jeito era ficar ali. Sentada. Na maior solidão que um ser humano pode experimentar em vida. Ficar sentada em uma cadeira de balanço esperando o tempo passar. O corpo tombando de lado. Os lábios, que antes haviam beijado, reclamado e apascentado, agora parados, tombados. Sem coordenação motora. E o olhar? O olhar de um cão perdido. De uma criança perdida, melhor dizendo. E esperando. Esperando por uma misericórdia fatal que acabasse de vez com aquela história cruel de se deixar manipular por estranhos como se fosse novamente uma criança. E sempre esperando os dias e as horas passarem em direção à solução final que não chegava.

E quem eram afinal aquelas pessoas que arrastavam a sua pele pela casa? Para o banheiro? A limparem suas partes íntimas sem mais nem menos? E que lhe vestiam, rindo às gargalhadas da sua patetice; de suas caras e bocas de idiota. E ela ria também de tudo aquilo. Como uma pateta. Era quando ela voltava ao passado. Lembrando dos namorados mortos; esquecidos; levados pelo tempo. Mas era preciso voltar ao passado para se proteger. De alguma forma eles ainda existiam ali por perto dela. O passado sempre voltava. Começava de novo. Sua mente recorrendo aos mortos como se eles fossem vivos. E esse batom que ela nunca ousou usar quando mocinha? Agora com os lábios pintados. Depois de tanto tempo. Quem pintou? Sentia-se uma adolescente pronta para namorar de novo. Uma criança, às vezes. E quem eram todas aquelas pessoas que haviam aparecido sabe-se lá de qual lugar e a tratavam como criança? E se pudesse ver o que aconteceu com ela. Veria o quanto era espalhafatosa a sua vida agora. E ainda por cima fazendo aquilo que sempre teve vontade de fazer e reprimiu. Durante anos foi assim. Agora não. Voltara a ser adolescente A viver o passado que nunca vivera integralmente. Logo ela, que trabalhara para todos; como uma escrava; sem tempo para se divertir. Agora vivia de sonhos e devaneios de um tempo em que tudo e todos existiam. E o que eram aqueles dois edifícios tão altos que se desmantelavam naquela tela colorida por causa da batida daqueles dois aviões?