Amigos do Fingidor

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Um poema amazônico para eleitores de todo o Brasil

Zemaria Pinto

Não sei quando o velho amigo Alcides Werk (1934-2003) escreveu o poema abaixo transcrito, que estava em seu primeiro livro, Da noite do rio, de 1974. Mas o bom Alcides, coração de manteiga sob o sol amazônico, engasgava e chorava copiosamente sempre que o recitava, de cor (de coração).

Alcides escreveu esse poema para denunciar a canalhice da indústria da enchente e da indústria da vazante. Pois é, irmãos nordestinos, os coronéis de vocês só têm a indústria da seca...

Passado o tempo da escolha local onde optamos entre o 6 e a meia-dúzia –, é preciso convocar a Poesia para cantar contra a canalha que promete qualquer coisa  em troca de um mísero voto. E agora vou dar um tiro no meu próprio 42: a perenidade da Zona Franca, prometida pelo candidato tucano, é um absurdo político e econômico. Ele sempre soube disso, tanto que sempre se posicionou contra a existência da Zona Franca de Manaus. Agora diz que vai perenizá-la. O tiro: a Zona Franca, hoje, é nada mais nada menos que o direito do governo estadual de trabalhar com alíquotas reduzidas, para manter (as que já estão aí) e atrair (novas) indústrias. O conceito de Zona Franca dos anos 70/80 foi ferido de morte pelo Collor e recebeu o tiro de misericórdia do FHC. A Zona Franca já não existe mais, há muito tempo. Cala a boca, Serra!

O outro lado. A candidata Dilma, quando for presidente, precisa ficar de olho na estadualização dos programas federais. O Luz Para Todos não atingiu 100% do Amazonas, por dois motivos: incompetência técnica – o Amazonas é outro mundo, e assim precisa ser visto e tratado; canalhice eleitoreira: as áreas de oposição aos coronéis de barranco não têm prioridade. Outra: a maior parte do Bolsa Família ficou no bolso dos agentes dos governos estadual e municipais. Fica esperta, Dilma! 

O poema, não vou explicá-lo. O texto do Alcides é de uma limpidez – e de uma lucidez – que prescinde de qualquer explicação. Leiam o poema e tirem suas conclusões. 


DAS ÁGUAS GRANDES


                        Alcides Werk



O barco passando e a onda molhando
o menino molhado, na porta da frente.
O homem doente
deitado na rede
com os olhos cansados de espanto e de mágoa
de ver tanta água
de ver tanta água
bebendo do sangue, roendo as raízes
de tudo o que fez.
Na estreita maromba,
os bichos chorando de fome e de frio,
com medo do rio
com medo do rio que cresce outra vez.

(Quando eu for Presidente,
de amplos e amorosíssimos poderes,
decretarei,
sem visto do congresso,
nem processo,
canonizando santos nacionais
os mártires da enchente.
Convocarei um exército de anjos
para domar o rio e o desvario
dos prováveis dilúvios anuais.

Mesmo assim, por razões de previdência,
visto que temos mártires demais
e precisamos de gente,
levarei meus irmãos pra terra firme,
onde casa não pode ser navio,
nem se esteja sujeito
às caprichosas emoções do rio.)

O barco passando, e meus olhos sofrendo
da mesma miséria da mesma miséria
que veem.

E, de repente,
me vem uma vontade provisória
de encher os bolsos de demagogia,
entrar em cada casa com uma estória,
qualquer que seja – que não seja séria,
falar de tudo – menos de miséria,
prometer coisas que não cumprirei,
como se faz em tempo de eleições,
para que sejam menos infelizes
(enquanto o rio esconde as roças podres),
mastigando ilusões.