Zemaria Pinto
O homem ocupa o espaço
IV
No livro Da noite do rio, Alcides Werk registra, num poema intitulado “Transamazônica”, sua ilusão temporária:IV
Largo caminho avançado,
avançando.
Pontes.
Ramais aproximando cidades.
Lavouras,
pecuária,
minérios,
riquezas incontáveis,
escolas,
hospitais,
indústrias,
trabalho e pão para todos.
O poema foi sumariamente retirado das 1ª e 2ª edições de Trilha Dágua, reaparecendo na 3ª edição com o título “Do tempo entre duas águas”, mantendo apenas, praticamente inalterados, os 15 primeiros versos, para então mergulhar em profundo delírio, trocando o prosaísmo que caracterizava a versão anterior por um lirismo amargo e cortante.
A água, o rio, a enchente; a terra, a floresta, a várzea; o homem, a cidade, o mito. Como se relatasse uma visão onírica, o poeta nos conta da enchente e seus transtornos, mas sem deixar de vislumbrar no fenômeno a força telúrica de uma transformação a ocorrer no próprio homem.
Logo nos primeiros versos, a partir de um dado suprarreal – a mãe-do-rio, “ente responsável pelos fenômenos do rio e pelo destino dos seres que o habitam”, segundo o próprio autor –, aquele fenômeno é descrito de forma concisa e voluptuosa:
A mãe-do-rio virá com suas águas poderosas
e inundará a várzea,
e cobrirá os jutais e os tapiris,
e invadirá os domínios da mata.
Note-se que a mãe-do-rio é, também, para o ribeirinho, do ponto de vista geofísico, a calha principal do rio.
A desilusão do caboclo frente ao acontecimento cíclico reafirma a desilusão com a atividade extrativista, primária:
Minha gente conhecerá, ainda uma vez,
o espanto da enchente
e a ilusão dos jutais e das lamas humosas
Mas as águas poderosas, fortes, destruidoras, trazem também, em seu bojo, a fertilidade. No acasalamento com a terra da várzea, a água se masculiniza, e a vida se reinventa, se refazendo:
Os peixes se multiplicarão nos igapós,
e o rio doará à várzea a fertilidade das águas.
Mas é a partir de uma ideia milenar – o começar uma nova vida após a destruição/purificação pelas águas – que o poeta atinge o máximo de sua expressão:
e se refugiará nas marombas
com seus animais
e as sementes de novas esperanças
Estas sementes não são apenas a esperança no amanhã, na aurora, no novo dia, mas sim, e principalmente, a esperança em que o próprio homem – cada homem, ilhado em sua arca/maromba – reflita sobre a necessidade de mudar-se. É sobre essa ideia que se desenvolve a segunda parte do poema, quando o poeta vaticina a desobstrução dos “canais dos nossos sonhos” (dentro da ambiência amazônica do poema, alusão longínqua, também, à obstrução dos canais, furos e braços de rios, nas enchentes, com matupás e canaranas, impedindo a navegação dos pequenos barcos dos ribeirinhos) por uma “força benéfica”, trazida no rebojo das águas poderosas. Aqui, a realidade é invertida numa visão utópica pela atividade daquela força benéfica:
• Ao contrário do que vemos no espaço da capital amazonense – a “urbe com suas indústrias e seu comércio”, capital da Zona Franca e da maior taxa de crescimento demográfico do país, consequentemente, capital da miséria –, o caboclo ao migrar para cá sonha em não viver num
amontoado de seres revoltados
• Renegando, definitivamente, a estrada miraculosa que engendrara a primeira versão do poema, o autor vê em sua utopia, “caminhos da várzea” e “caminhos da terra firme”, construídos pelo bom senso do homem, onde o seu trabalho não será mais consumido pelas águas. E as “florestas indomadas”, inacessíveis, serão apaziguadas e o subsolo terá seu “segredo milenar” desvelado – longe dos delírios megalômanos dos
governantes
sem enveredarmos por transamazônicas impossíveis
• O “espírito da cidade” e o “senhor da mata”, regozijados com o encontro do homem consigo mesmo, serão seu guia lá ou cá, enquanto a mãe-do-rio continuará sua faina fértil
e apascentará os cardumes
que alimentarão nossos filhos.
Essa mudança de valor na ideia de grandeza (águas destruidoras, negativo/água férteis, positivo) ilustra bem a observação de José Veríssimo, no seu Estudos Amazônicos, de que o caboclo conserva dos tupi-guaranis “a crença geral de que tudo tem uma mãe, o ci do servagem”. Assim, Werk antepõe à mãe-do-rio e ao senhor da mata, entes conhecidos do caboclo, o espírito da cidade, atuando na urbe com a mesma função daqueles: presidir seus fenômenos e o destino de seus habitantes.
Finalmente, completando a espiral que encerra o poema, o autor –por força da ação daqueles entes poderosos – une, no espaço da composição – o rio, a floresta, a cidade –, o sonho do “paraíso amazônico”, tão caro a uma poesia já perdida no tempo. No caso de Werk, entretanto, esse recurso não é mera retórica, posto que o perpetuar
o gesto simples
do amanho e da partilha justa
é consequência de uma mudança que não é produto de milagre, mas sim de uma mutação de comportamento e atitudes que ensejarão ainda muitas e muitas idas às marombas.