João Bosco Botelho
A laicidade da caridade, reafirmando as diretrizes neotestamentárias,
compondo Deus que perdoa e sublima o confronto e o contrário, diferente Daquele
do Velho Testamento, tem sido reconhecida como um dos mais importantes
instrumentos teóricos da cristianização, identificado na afirmação de
François-René Chateaubriand: “A caridade, virtude absolutamente cristã e
desconhecida dos antigos, nasceu com Jesus Cristo; é essa a virtude que
distingue o homem dos outros mortais e foi o selo de renovação da natureza
humana”.
Próximo desse conjunto teórico-sacro se destacam as
corporações, confrarias e irmandades que ofereciam cuidados médicos
diferenciados e amparavam setores específicos de trabalhadoras e as famílias,
em várias cidades do medievo europeu, entre os séculos 14 e 15. Outra vez, a plasticidade
da Igreja conseguiu manter a presença nessa reconstrução das práticas médicas e
das profissões mais rentáveis e com clara importância social no medievo europeu.
As decisões do Concílio de Trento, entre 1545 e 1563,
colocando a Igreja em sintonia com os Estados fortes, para superar o avanço das
idéias luteranas, estão amalgamadas nessa ética médica cristianizada que
motivou os primeiros hospitais também sob a guarda da caridade. Os poderosos
das cortes doavam somas vultosas para facilitar o acesso ao perdão dos pecados,
sendo uma das opções essas construções insalubres para receberem doentes de
todas as naturezas, levados pelas famílias que não os desejavam por perto, e, sob
a assistência dos abnegados religiosos sem preparo médico, morriam rapidamente.
De certa forma, o Concílio de Trento moldou as bases na
caridade laicizada, como a unção dos enfermos, sacramento e o reconhecimento de
leigos na graça santificante. Graças a esse concílio, a autorização
eclesiástica foi formalizada para os que exercitassem a caridade cristã, teriam
a garantia do acesso ao Reino de Deus. Os homens e as mulheres ricas
encontraram na abertura conciliar a argumentação para justificar a postura de
amparo aos enfermos e necessitados com a recompensa da ida para o paraíso após
a morte.
Esse pressuposto
oferecia a quem fizesse caridade a plácida sensação de estar garantindo a
entrada no Reino, sem falar no agradecimento recebido pelo poder temporal,
interessado em repassar as tensões sociais agravadas pela peste, a fome e a miséria,
que flagelavam a vida dos pobres, a maior parte da população.
A intensificação da caridade como instrumento de controle
social conseguiu atenuar o brutal contraste entre os poucos com muito dinheiro
com a maioria esmagadora sem nada. Essa última parcela, homens e mulheres sem
senhor, constituíam as hordas de mendigos migrantes entre os burgos, que
assaltavam e matavam os que viajavam sem a proteção dos cavaleiros dos senhores
feudais.
As corporações, confrarias e irmandades, inclusive a Confraria
dos Cirurgiões, sob a proteção de São Cosme e São Damião, fundada pelo
cirurgião-barbeiro Jean Pitart, representou parte da resistência dos que
continuavam na miséria absoluta na alta Idade Média.
O aperfeiçoamento desse processo de resistência contribuiu
para o surgimento dos grupos de proteção mútua, nos moldes da “compagnia”,
fundada em Gênova em 1099, financiada pelos marítimos. As corporações, confrarias
e irmandades amparavam as famílias, construíram estruturas arejadas para tratar
os doentes, financiavam os enterramentos dos mortos e protegiam as viúvas e os
órfãos.