David
Almeida
Um dia desses, estava eu andando com
minha câmera fotográfica, à procura de algo; uma cena; uma imagem que pudesse
gerar uma matéria e ser noticia, quando, de repente, na minha frente, vi
cachorros feitos marinheiros, tomando conta de barcos ancorados às margens do
Rio Negro, na Manaus Moderna – aquela avenida que começa bem em frente ao mercado
Adolpho Lisboa e adentra o Igarapé de Educandos. Os cachorros pareciam estar
cumprindo obrigações. Sempre atentos, andavam de um lado para o outro na proa
de seus barcos, parecia que suas atitudes eram de extrema preocupação com seus
afezeres. Achei aquilo interessante: “Cachorros Marinheiros”. Nunca tinha visto
uma cena assim tão perfeita, e por um momento pensei que, sem querer, tinha
entrado no mundo de “cachorro gente”, e eu era do mundo de “gente cachorro”. O
que me salvou dessa viagem surreal foi a câmera fotográfica que segurava em uma
das mãos, me fazendo voltar ao normal, lembrando que o cachorro, além de ser
considerado, desde os tempos mais remotos, o melhor amigo do homem, prova
também que é bom marinheiro.
Um parecia que inspecionava se o barco
do seu dono estava bem amarrado, olhando firmemente para a corda, que enlaçava
um toco e prendia a embarcação, enquanto os outros descansavam, após o serviço
prestado, mas sempre rosnando a qualquer atitude suspeita. Nenhum desconhecido
podia se aproximar da área do seu domínio. Isso sem ter carteira assinada e
plano de saúde, tudo só pela amizade, carinho, comida e respeito de seus donos,
que é o mais importante.
Em outras instâncias, a vida de cachorro
não é de cachorro, pois uns até gozam de um “lar doce lar”, num espaço especial
da casa; em cima de almofadas; de tapetes de luxo, comidas de primeira e até salão
de beleza; muita mordomia. “Eita”, cachorrada de sorte! Esses são cachorros
gente.
Outros, nem tanto assim, ficam numa
casinha de nada, nos fundos de um quintal, as vezes, até amarrados, comendo o
que sobra da casa, ou o pão que o diabo amassou. Esses vivem, literalmente, a
vida de cachorro. Outros, nunca tiveram donos, ou foram abandonados à própria
sorte; pirentos, cheios de sarnas, carrapatos, vivendo, por aí, vagando pelos
umbrais da vida à procura de carinho e amizade, correndo atrás de carros, latindo
nas noites, se algo diferente lhes parece, e, quando a fome aperta, vão
procurar comida em terrenos baldios, nos lixões, onde for fonte para matar sua
fome. É uma vida de cão.
Parece absurdo e vergonhoso, mas, às
vezes, os comparo com a maioria do povo brasileiro, que não tem dono, nem casa,
mas pertence a currais eleitorais de onde elege seus representantes pelo voto
da irracionalidade de sua fome e vivem à margem da sociedade: abandonados,
despejados, dormindo nas calçadas, procurando comida no lixo, pedindo esmolas
nas ruas, sem ter, pelo menos, uma casinha no fundo de um quintal para
descansar. É vida de “gente cachorro”.
No caso dos cachorros marinheiros, um
espaçozinho na popa ou na proa de um barco, já lhes é o bastante: dormem
embalados pelas ondas.