João Bosco Botelho
O processo
da cristianização de Roma, durante o reinado do Constantino e após, fruto do
enfraquecimento das fronteiras romanas pelas invasões dos godos e visigodos,
introduziu mudanças no sistema mercantil escravista para o feudal e alcançou a
ética da Medicina.
Nesse
processo complexo, a Medicina se distanciou dos conceitos gregos jônicos da
físis e se aproximou da doença como mal gerando o castigo divino, como nas
culturas da Mesopotâmia, Egito, Índia e Grécia homérica, entre os séculos 7 e 5
a.C. Sem pretender simplificar muito, o tratamento mais importante para a
doença como mal, seria a força de Deus e de Jesus Cristo, intervindo para
promover a cura por meio do milagre.
É possível
compreender essa abordagem, que motivou outros conceitos teóricos à ética e à moral,
alcançando também as práticas médicas, como regressão às conquistas
greco-romanas. Essas mudanças também provocariam desconstrução urbana, no
medievo cristão europeu, com as administrações das cidades se descuidando da
higiene pessoal, ruas estreitas, casas abafadas e sem exposição solar, pouca
água potável, retorno do enterramento dos corpos nos limites urbanos e ausência
de esgoto sanitário.
Os banhos
públicos, usados simultaneamente por homens, mulheres e crianças, entendidos
como local de excessiva exposição dos corpos propiciando maior exacerbação da
sexualidade, foram precocemente combatidos pela nova ordem cristã que se
empenhou em fechar todos.
Esse fato
associado às outras importantes mudanças no urbanismo das cidades alcançou o
novo mundo cristão em ascensão, inclusive e especialmente a prática médica,
fechando as escolas de Medicina e interditando o manuseio do corpo morto para o
estudo da anatomia. Esse conjunto fulminou as práticas médicas greco-romanas,
sob a égide da ética hipocrática, e introduziu outro processo monolítico
ideológico, sob forte fiscalização eclesiástica, reconstruindo outra ética na
Medicina, que se estenderia até a baixa Idade Média.
Os serviços
profissionais dos agentes da Medicina-divina, Medicina-empírica e
Medicina-oficial, até então entendidas como trabalho profissional remunerado,
passam para a categoria dos trabalhos que deveriam seguir o exemplo de Jesus
Cristo e dos apóstolos, cujos sacerdócios incluíram muitas curas milagrosas. O
milagre cristão passou a ser a principal motivação da cura das doenças.
A ética da
Medicina absorveu, na Roma cristianizada, o entendimento da doença como
consequência da desobediência a Deus, Jesus Cristo e aos santos, e se
transformou em sinônimo de castigo. Com as escolas de Medicina fechadas e,
consequentemente, o ciclo da formação de médicos interrompido, deixando o povo
sem opções, se intensificaram:
–
Peregrinações aos santuários católicos, especialmente, Jerusalém e Santiago de
Compostela, na Espanha;
– Devoção
aos santos com poderes de curar determinadas doenças;
–
Edificações de ofertórios dedicados aos santos ou santas relacionados à doença
mais temida, nas principais ruas ou praças das cidades.
Com o
fechamento das escolas de Medicina, a partir do final do século 6, as práticas
médicas se aproximaram dos abadias e mosteiros, onde padres e freiras prestaram
assistência aos doentes sob a égide da ética, moral e caridade cristã.
Sob a guarda
das proibições eclesiásticas impondo nova ordem à ética médica, impedindo as
práticas cirúrgicas, mais duramente a partir do século 9, a cirurgia foi
excluída da Medicina e se tornou atividade não recomendada aos homens de bem.