Zemaria Pinto
2.
EXPERIÊNCIAS, OBSERVAÇÕES
O meu primeiro
estranhamento com narrativas curtíssimas, foi com Kafka, num livrinho das Edições
de Ouro, de 45 anos atrás: Contos – A
colônia penal e outros, que trazia clássicos como “A metamorfose”, “A
sentença”, “Informações para uma academia”, “Um artista da fome” e “Na colônia
penal” – de fato, capa e miolo discordavam. Lá estava o magnífico “Diante da
lei”, com suas duas pagininhas, que eu encontraria anos depois como o centro
irradiador de O processo. Lá estavam
também textos de uma página e outros que podiam ser contados em linhas, como
este “O desejo de ser pele-vermelha”:
Se alguém
pudesse ser um pele-vermelha, sempre alerta, cavalgando sobre um cavalo veloz,
através do vento, constantemente sacudido sobre a terra estremecida, até atirar
as esporas, porque não fazem falta esporas, até atirar as rédeas, porque não
fazem falta rédeas, e apenas visse diante de si que o campo era uma pradaria
rasa, teriam desaparecido as crinas e a cabeça do cavalo.
(p.
76)
Falei de minha
experiência pessoal, não da história do conto curto. O que são as fábulas de
Esopo, se não contos curtíssimos? Há 2.600 anos, Esopo era capaz de relâmpagos
como este:
Uma gata, tendo
entrado na oficina de um ferreiro, pôs-se a lamber uma lima que ali se
encontrava. Aconteceu que, esfregando a língua, saiu muito sangue. Ficou feliz,
imaginando que tirava alguma coisa do ferro, até que, finalmente, perdeu a
língua.
(p.
51)
Em Kafka temos uma
imagem que vai se descontruindo na mesma velocidade do cavalo do pele-vermelha,
até se tornar mera paisagem, do ponto de vista do cavaleiro. Mas, sob a
perspectiva do leitor, o quadro que se apresentava antes é outro: cavalo e
cavaleiro se metamorfoseiam, tornando-se um só: sem esporas, sem rédeas e sem
poder ver a própria cabeça. As referências endógenas à obra de Kafka são
óbvias: A metamorfose e América – naquela, a transmutação do
indivíduo em algo aquém-humano; nesta, o pele-vermelha como alegoria da
liberdade de ir e vir. Naquela peça de pouco mais de 50 palavras estaria a
gênese desses trabalhos? Se não, pelo menos a manifestação de ideias em estado
de latência.
Esopo, imaginado por Velázquez. Século XVII. |
A fábula de Esopo não
deixa nenhuma dúvida quanto ao seu objetivo didático, mas nem por isso é menos
inventiva, tantos são os símbolos e paradoxos espalhados em tão pouca extensão:
gata, representando o estereótipo feminino; lima, um instrumento de desgaste
lento, de tortura, talvez; sangue proporcionando felicidade, como se fosse o
alimento desejado; e o improvável choque da perda total. Como estamos sob o
protocolo da fábula, entretanto, mesmo o improvável é verossimilhante.
Em ambos os casos, a
intensão se faz sentir a partir do tensionamento gradativo da narrativa, até a
culminância, que se dá na última imagem – desaparecidas as crinas e a cabeça do
cavalo, em um, e a perda da língua, no outro – quando a intensidade atinge o
seu limite máximo.