Paulo Sérgio Medeiros
Na noite em que pingos de
espírito natalino encharcam corações de altruísmo, Floriano com seus cabelos
pretos e bigode alvo mergulha no fundo da solidão. Criado pela madrinha, cujo
senso de família ficou arraigado em tenra idade, ele era o próprio compêndio de
uma aridez emocional. Teve a chance de pontilhar as letras castrada pela dura
cartilha de uma criança que tinha o pedido de benção guardado no bolso do
abandono desde os primeiros cueiros. Logo amadureceu e a perene ojeriza pelas
relações familiares era o cume de um legado degenerativo. Experiente, aos
dezenove anos ganhava pouco dinheiro com muito trabalho para a madrinha – pois,
ele não via um único centavo do salário – singrando as águas do Solimões e as
do Negro como ajudante de bordo do motor de linha Seledom. Carregar fardos de
feijão, farinha, engradados de cerveja era bem mais leve que o fardo do
desamparo. A ausência da figura paterna pesava como uma cruz em cada braço. Seu
Luís, proprietário do Seledom, tentava em vão assumir o papel de educador com
receio de vê-lo totalmente perdido. Num recreio carnavalesco, lá pelos rincões
do Careiro da Várzea, Floriano encontra o fim dos dias solitários nos olhos de
Graça. Foi amor à primeira vista. Aquela carioca de cabelos na altura dos
ombros e olhos arredondados lhe caiu como uma tábua de salvação. E incentivado
por ela e corroborado pelos conselhos de seu Luís largou a vida de marítimo
para trabalhar por conta própria e logo a prosperidade bateu-lhe à porta e o
matrimônio pousou-lhe sobre os ombros oito meses depois de muitos encontros às
escondidas. A união foi o visto para a liberdade. O casulo matrimonial de
muitos é a carta de alforria de outros. Já no primeiro Natal, o primeiro em
família com direito a ceia e estouro de champanhe, deixou a esposa em casa com
a desculpa de ir ao açougue apanhar sua capanga com a renda do dia e viu o
romper da aurora no puteiro Maria das Patas. O sereno boêmio da Manaus dos anos
setenta lhe caíra como um véu. O brilho da primeira estrela no céu era o
convite da metáfora do prazer àquele notívago outrora reprimido. As noites no
Maria das Patas – reduto dos açougueiros e taxistas – roubaram aquele homem
renegado pelo pai dos braços daquela que seria capaz de cortar os pulsos por
ele. Todas as noites Graça esquentava a janta, arrumava a mesa e apostava que
com a chegada da primeira filha a gandaia juvenil se esvairia. Mero engano, com
as rugas marcando a passagem do tempo em sua face, Graça, doméstica não
letrada, resolutamente embrulhara a esperança num papel de conformismo. Os
filhos foram nascendo um atrás do outro, todavia o sangue farrista do pai
ausente lavava as veias de Floriano não o permitindo largar o osso da
velhacaria. A leviandade o prendia naquele mundo sujo. Com o aumento da prole e
a concorrência de algumas amantes disfarçadas de sobrinhas da madrinha, os
negócios empacaram. Por conta da escassez do dinheiro, o ritmo frenético de
suas farras e a presença constante dos amigos foi se desvanecendo. Os
arranca-rabos se hospedaram na casa metade de madeira, metade de alvenaria. A
casa era a própria síntese do casal. Sem mais as porções de ilusões
proporcionadas pelos rabos de saia Floriano queria, em plena véspera de Natal,
encontrar o pai como se sua benção o libertasse da solidão...