Jorge Bandeira
O uso da Internet com propósitos elevados de pesquisa me possibilita falar dessa grande artista guatemalteca, nascida em 1974, que tem demonstrado de forma incontestável ser uma das mais atuantes artistas da arte da performance em nossos dias. Galindo já recebeu alguns prêmios em virtude de suas intervenções artísticas, entre os quais o Leão de Ouro na Bienal de Veneza de 2005. Nesta série de artigos irei me deter em seus trabalhos especificamente sobre o eixo “nudez em performance”, com as intervenções de Regina José Galindo em estado de nudez total e analisarei esses trabalhos à luz dos conceitos historicamente trabalhados pelos pesquisadores naturistas, seus vínculos com o corpo nu, as possibilidades de uma união entre arte e nudez, envolvendo considerações de diversas ordens – sociais, culturais, estéticas, históricas e filosóficas.
Impressiona a diversidade e quantidade de suas performances, e Regina Galindo também é poeta, de uma poesia econômica, direta e concisa. Suas obras possuem uma calculada precisão, e a artista deve fazer uso de um rigoroso roteiro analítico para que seus propósitos de performer alcancem da melhor maneira o público-alvo. Seu corpo nu é usado como um símbolo claro, onde a artista imprime doses de extrema coragem e naturalidade ao mostrar-se nua em público, nas situações mais inquietantes que um artista pode sofrer.
O poder dessas imagens naturais não deixa nenhum espectador incólume, no sentido de um dano sensorial, de seus sentidos, sobre a obra de Regina Galindo. Seu trabalho é insuportavelmente sincero, e nos abraça com todas as forças de um corpo em estado emergencial, que precisa nos dizer algo, caso contrário irá sucumbir neste mundo de “acomodações” e “anestesia” sobre as questões urgentes da vida em sociedade. Galindo é uma artista contemporânea, com preocupações de ordens mundiais, globais. Mesmo quando realiza sua performance no plano mais político de um tema, seus ecos poéticos se deslocam para vários países e situações. Seu trabalho, neste aspecto, é universal, e a linguagem de seu corpo nu é compreensível em qualquer lugar e situação.
Momento da performance “Recorte Por La Linea”, de Regina José Galindo, onde o renomado cirurgião venezuelano, Dr. Billy Spence, marcava o corpo nu da artista para uma “provável” intervenção, de forma a criar o “corpo perfeito”, segundo os padrões da estética corporal existentes nos dias de hoje.
Um artista performático encara todas as situações que são perpetradas ao seu corpo de forma natural. Até porque ele(a) tem o domínio da situação, e nisso há uma linha de registro de alerta para o inusitado, o que pode decorrer das situações especialmente nas ruas, nas praças públicas, nos lugares onde a performance mais se agiganta, nos centros urbanos, nas passarelas, pontes, enfim, onde a multidão, o povo, costuma percorrer livremente em seu cotidiano. Cabe, ao artista performático, criar uma situação de “perturbação” do ambiente, causar umaa atmosfera de “suspensão” desse cotidiano, e nisso Regina José Galindo é de uma capacidade e inventividade extraordinárias!
Regina José Galindo na performance Piel (pele). Neste trabalho de 2001 a artista depilou todos os pelos de seu corpo, inclusive as sobrancelhas (restaram apenas os cílios!), e em seguida caminhou completamente nua pelas ruas de Veneza.
Neste impactante trabalho temos a artista como andarilho, nua, somente vestida com sua pele, sem artifícios, demonstrando em sua andança naturista o desejo de continuar, indo e sonhando, alheia aos comentários em sua volta, aos olhares de desaprovação, de escárnio, de piedade, de gracejos e taxações de transeuntes que a têm como tresloucada, exibicionista e imoral. A artista encontra-se ao mesmo tempo forte e fraca, pois a situação inusitada a conduz firme até o fim de seu trajeto.
O ato inicial da performance foi raspar todos os cabelos do corpo, depilando-os completamente. Disso tudo resultou numa outra mulher, num outro ser humano (que em sua “pureza e estranheza” alguns vislumbraram como um extraterrestre que perdeu o seu OVNI e que caminhava pelo Planeta Terra em busca do improvável!).
O poder da imagem dessa nudez é indiscutível: o poder da pele que se descortina agora aos usuários das roupas e grifes. Quem seria mais estranho? Quem seria mais verdadeiro? Quem sofre mais imposições? São essas as chaves de inquietação que a brilhante artista carrega através de seus poderosos atos simbólicos, tudo através da performance.
Recorte Por La Linea, 2005. Venezuela.
Uma artista que se coloca nua, disponibilizando seu corpo integralmente para a reflexão dos padrões da estética corporal neste mundo de uma busca desenfreada pelo “belo”, custe o que custar. O cirurgião marca integralmente o corpo de Regina, é ele o que interfere nesse processo, no que está despencando, o que cai com o peso da idade, dos anos, da alimentação, um corpo nu, somente isso, e pronto para o abate nos hospitais onde as mulheres (e também os homens!) buscam essa “perfeição”, esse melhoramento substancial, nesse corpo que não pode ser mais, à luz dessa ótica, como perfeito, mesmo que seja uma criação divina.Linhas e geometrias que lembram as tatuagens dos índios, prenúncios de retirada de gordura e sangue desse corpo a ser mutilado, retalhado. Eis a mensagem da artista, somos vítimas de uma condição que nos impõe regras de bem viver, o mundo das cirurgias plásticas, dos elementos rejuvenescedores, das dietas milagrosas, das academias intermináveis, somos esse corpo que não vive mais sem essas interferências.
A performance de Regina Galindo traz à tona essas questões, e ela sabe, como mulher, que o sofrimento feminino deve muito às apelações da moda e do consumo, onde um corpo é só mais um tipo de alegoria de um utópico devaneio, e de onde a felicidade agora é servida pelos meios de comunicação e pela guerra chamada de mercado de trabalho, onde ter um corpo “apresentável” é regra impiedosa.