João Bosco Botelho
As ideias oitocentistas incentivadas pela fisiologia experimental de Claude Bernard aprumaram a ciência na tarefa de explicar como funcionava o corpo, quase sempre o associando aos avanços da técnica. O pleno exagero do mecanismo coube às palavras do pensador La Mettrie (ANCORA, Clemente et al. Homem, In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Anthropos-homem. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. V. 5) , em 1748, que conduziu a mecanização das pessoas ao limite máximo: “...em todo o universo não há senão uma única substância diversamente modificada, portanto o homem é uma máquina”.
No século 20, com a industrialização impondo as linhas de montagem e a necessidade rápida de mão de obra, os corpos tornaram-se complementos das máquinas. O mecanicismo trouxe um impressionante conjunto metafórico às linguagens-culturas: o coração passou a ser a bomba; o pulmão, o fole; o rim, o filtro e, finalmente, o cérebro, o computador.
Os reflexos sobre as mudanças na formação do médico não tardariam. Em 1910, o Relatório Flexner sobre as cento e cinquenta faculdades de Medicina, existentes naquela época, nos Estados Unidos, seguido, dois anos depois, pelo segundo Relatório, que descrevia os cursos médicos da França, Inglaterra, Alemanha e Áustria, selaram o destino da nova metodologia do ensino da Medicina. As universidades admitiram o maior produtor de saúde: as relações científicas vindas dos laboratórios de pesquisa. O conjunto formador estava apoiado na certeza de que o uso de aparelhos, para intermediar a ação médica oficial seria responsável para a melhoria das condições de saúde das populações.
Talcott Parsons, em 1951, entendeu a Medicina de modo semelhante às crenças e às ideias religiosas, compreendendo as enfermidades como significantes de desvio social. A saúde só poderia ser alcançada sob a estreita supervisão do médico. Essa abordagem foi marcada pelo etnocentrismo americano do Norte, da década de cinquenta, e legitimou os Relatórios Flexner ao afirmar: “O paciente tem a obrigação de buscar ajuda técnica competente (fundamentalmente um médico) e cooperar no processo de recuperação”.
A compreensão de Parsons estabeleceu a premissa de que o homem não pode ajudar-se a si mesmo. O médico seria o mais importante elemento mediador para vencer a doença. Essa abordagem fortaleceu a Medicina-oficial e a morte hospitalar, fixando forte relação de dependência do paciente frente ao médico.
É evidente que o estudo de Parsons só poderia ser aplicado em alguns segmentos sociais, nos países industrializados, com grandes recursos disponíveis para pagar os serviços de saúde.
Do mesmo modo como a concepção da saúde atada exclusivamente ao social, a aplicação dessa Medicina-oficial mecanicista só é aplicável entre as populações ricas e sem efeito prático nos maiores segmentos dos países subdesenvolvidos, onde a exclusão social esmaga e impede o acesso aos hospitais. A imensa parcela populacional desassistida, tanto no Primeiro quanto no Terceiro Mundo, continua recorrendo aos curadores populares para resolver os problemas da saúde e da doença.
Apesar da clara evidência, a prática médica nos países do Terceiro Mundo, desde os anos sessenta, ficou impregnada pelas teorizações de Engels, Flexner e Parsons. Os trabalhos acadêmicos ora primam para qualificar a dor como fruto da injustiça social, ora oferecem a máquina como solução para prolongar a morte temida.
Apesar de a maior questão dos saberes médicos não estar resolvida em qual dimensão da matéria viva a doença começa a substituir a forma preexistente para transformar o normal em doença? , os médicos oriundos da sedução marxista ou do tecnicismo exacerbado acreditaram, perigosamente, na infalibilidade da Medicina oficial e distanciaram-se do doente. As intolerâncias dos dois segmentos forçaram o abandono da milenar tradição médica que valoriza a relação médico-paciente, explícita nos escritos da ilha de Cós, como ponto de partida para alcançar a cura.
As ordens médicas da doutrina flexneriana e do socialismo desmoronado, como ventos polares, aderiram ferozmente na maior parte dos médicos, entre os anos 1960 e 1980. Se, por um lado, os Relatórios Flexner concorreram para consolidar o ensino da Medicina, nos Estados Unidos da América e nos países da Europa, e a publicação de Engels remeteu à crítica dos abusos do capitalismo, por outro, ambos podem ser responsáveis pelo descrédito com que a ciência lidou, a partir de então, com o conhecimento historicamente acumulado dos curadores populares.
A pior resultante da tecnocracia médica se refletiu no abuso dos medica-mentos e da hospitalização. O médico não precisaria conhecer o paciente, bastaria estabelecer o diagnóstico e prescrever o tratamento. Os testes laboratoriais seriam confiáveis para garantir que as doenças, e não os doentes, responderiam de acordo com o esperado.
Na contracorrente da intolerância que afastou o médico do doente, alguns centros de pesquisas sociais iniciaram estudos para entender como as pessoas se relacionavam com as doenças e práticas de curas fora dos muros das universidades. O trabalho desses críticos da exclusiva tecnocracia médica trouxe para as academias os conflitos resultantes das relações profissionais com os dois sistemas de saberes: o mítico e o cientifico.
Ao contrário das afirmações de Flexner e Parsons, o controle das doenças sempre esteve além do social (LE GOFF, Jacques; SOURNIA, Jean-Charles. Les maladies ont une histoire. Paris. L'Histoire-Seuil. 1984):
A doença não pertence somente à história superficial do progresso científico e tecnológico, mas à história profunda dos saberes e práticas ligados às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades.
É insuficiente entender a doença apenas como uma consequência das agruras sociais. As evidências apontam para a doença como dependente do social e do genético para que os indivíduos possam fugir da dor-pessoal, transpor a dor-histórica e procurar o prazer. Cada pessoa possui incontáveis padrões específicos para identificar qualquer ameaça de dor. As respostas biológicas frente às sensações dolorosas foram acumuladas durante o processo de humanização, contidas nos circuitos específicos dos sistemas nervosos central e periférico e em cada segmento microscópico do corpo, todos moldados no genoma.
A herança genética é a responsável pela recombinação desses incontáveis padrões e garante a transmissão aos descendentes na reprodução sexuada ou na inseminação artificial.
Muitas dúvidas quanto à possibilidade de o social causar alterações genéticas, transmitidas à prole, desapareceram após os estudos das mutações genéticas e dos trabalhos do cientista Susumi Tonegawa, o Nobel de 1987, esclarecendo como se dá a variação na ordem dos aminoácidos dos anticorpos produzidos nos linfócitos B. O pesquisador demonstrou que, quando o linfócito B se desenvolve, segmentos do seu material genético são selecionados e misturados para formar novos genes, dando origem a milhões de sequências variadas de aminoácidos, capazes de efetuar com competência a defesa do corpo humano contra as agressões micro e macroscópica do exterior.
Como consequência imediata dessas pesquisas, é possível afirmar que pelo menos parte da estrutura genética do homem é móvel, competente de desenvolver, durante a vida, infinidade de combinações gênicas adaptadas às necessidades vividas. Com essa certeza, é possível articular o sólido elo entre a herança genética e a vida social.
A doença e a dor, por serem entidades abstratas e não existindo sozinhas em si mesmas, recebem nomes e classificações do homem, que as teme quando sente a possibilidade da dor fora de controle ou a proximidade da morte prematura. Como resposta constrói e reconstrói sistemas cognitivos dos saberes e símbolos míticos e empíricos, oriundos de tempos muito distantes, com poderes suficientes para mudar comportamentos com o objetivo de moldar a sociedade. Esses circuitos natos - as memórias-sócio-genéticas - localizadas no genoma respondem pelas correntes que ligam o ser ao social e à genética, impulsionando as pessoas contra as ameaças da dor e as aproximando de condições prazerosas.
Como a forma anatômica antecede qualquer manifestação do ser vivente, isto é, para que possa construir linguagens-culturas é indispensável existir um ou mais segmentos na forma do corpo, nas dimensões macro e microscópica, que sejam os responsáveis pela função. Esse elo, indispensável à vida, preserva a multiplicidade das sensações corpóreas objetivas e subjetivas, nas linguagens-culturas orais e escritas de todos os matizes e alcançam a libido, fome, sede, medo, amor, raiva, choro, sono e outras sensações corpóreas.
Considerando o ser como produto de longo processo da evolução, possui obrigatoriamente nas cadeias do ADN muitos segmentos de combinações que o religam de modo permanente ao passado recente e ao muito distante. Uma vez que o processo de mudança da forma e da função do corpo deu-se lentamente, adaptando a espécie humana à sobrevivência e forçando a fuga da dor, mantém no genoma as memórias-sócio-genéticas, adquiridas e armazenadas na ontogênese.
Sob essa perspectiva teórica, os símbolos e metamorfoses das linguagens-culturas que ligam as memorias-sócio-genéticas aos limites da cura são partes do conjunto biológico que dependem do social e do genético.