Pedro Lindoso
Quando a vi no
hall de entrada do Teatro Amazonas, não tive dúvidas. Era Antônia, a eterna
Miss Borba. Estava entre turistas franceses, vindos para o Festival de Ópera. Antônia nasceu no dia 13 de junho, dia de Santo Antônio de Borba. O mesmo Santo Antônio de Lisboa, de Pádua e de todos os devotos brasileiros e portugueses. Assim, Antônia só poderia se chamar Antônia. Filha de uma cabocla de Borba, município amazonense às margens do Rio Madeira, e de um empresário descendente de libaneses. O pai de Antônia era casado e durante muitos anos iludiu sua mãe com promessas de desquitar-se para com ela se casar. Nunca cumpriu a promessa. Mas sempre deu para mãe e filha toda assistência financeira e afetiva. Aos doze anos, Antônia ficou órfã de mãe. O pai veio buscá-la. De beleza ímpar, desde cedo recebeu educação primorosa e portava-se como verdadeira princesa, como se transportada das Arábias para a Amazônia. O pai decidiu mandá-la para o Rio de Janeiro. Antônia foi interna no Colégio Bennet. Tradicional e centenário, o Bennet é das mais respeitadas instituições educacionais do Rio. Retornou a Manaus aos 18 anos completos. Fluente em inglês, francês e com curso técnico em secretariado, logo lhe foi oferecido um emprego no Palácio Rio Negro, sede do governo do Amazonas. No seu primeiro dia no Palácio, o assessor direto do governador estava às voltas com um projeto inusitado: apoiar o concurso de
Miss Amazonas. O Estado do Amazonas deveria eleger a
miss Brasil. E mais, o governador queria a participação de garotas do interior. Como Antônia havia nascido em Borba, de imediato foi escalada para representar o município. Foi assim que Antônia ficou conhecida como a eterna
Miss Borba. Eleita
Miss Amazonas, classificou-se em terceiro lugar no
Miss Brasil. Viajou o país e o mundo. Naquela época, os concursos de
miss eram prestigiados e concorridos. A
miss era uma celebridade. E como tal, Antonia retorna a Manaus. Um baile acontecia no Palácio Rio Negro. Antônia vestia um conjunto em seda chinesa. Estava deslumbrante. Nos salões do Palácio, toda a sociedade manauara em noite de festa, gala e esplendor amazônico. A orquestra tocava The Platters –
Only you, quando Roberto, o assessor do governador, recém-desquitado, tirou Antônia para dançar. O rapaz insistia: Preciso falar com você. Urgente. Vamos ao segundo andar do Palácio. Após subir as escadas, vá para o segundo salão à esquerda. Aguardo você lá. Ao entrar no salão, Antônia ficou fascinada por uma linda mobília em estilo oriental. Uma espécie de aparador com prateleiras entalhadas em estilo chinês. A bela mobília tinha simplesmente o formato de um interessante pagode chinês. Aliás, o móvel é chamado, apropriadamente, de pagode chinês. Compõem o conjunto duas cadeiras de balanço, também em estilo oriental. Antônia nunca me disse o que houve naquela noite entre ela e Roberto. Dileto amigo, Roberto faleceu num famoso desastre de avião, chegando à Paris, onde se casaria com Antônia. Voltemos ao
hall do teatro. Naquela noite, o Festival Amazonas de Ópera apresentava “Samson et Dalila" de Camille Saint-Saens. O Festival homenageava a França, com seleção de óperas composta de peças francesas. O festival recebe muitos turistas europeus, especialmente franceses e alemães. Ver uma bela ópera e ainda conhecer a Amazônia é sempre um apelo irresistível. Mas a presença de Madame Antônia Carradot, anônima, no
hall do Teatro Amazonas, era algo que precisava ser esclarecido. Porque não se comunicara comigo era um mistério. Fui a Paris providenciar o traslado das cinzas de Roberto. Uma tragédia. Dei-lhe todo o carinho, toda a atenção merecida. Sempre muito simpática comigo. Nunca entendi seu silêncio. Antônia recebeu todo o carinho e atenção possível naquele nefasto evento. E agora, retornando anonimamente a Manaus, eu tinha que falar com ela. Me aproximei, sutilmente. Ela me reconheceu e sorriu. Pediu encarecidamente que não contasse a ninguém que estava ali. Só queria um favor meu. Ir ao Palácio Rio Negro, rever o pagode chinês. Perguntou-me se conhecia alguém no governo que pudesse facilitar a visita. Disse-lhe que não precisava. O Palácio agora era um centro cultural aberto ao público. Poderia levá-la na manhã seguinte, antes de sua partida para o aeroporto, de volta à França. Perguntou-me se a intrigante mobília ainda estava no palácio. Disse-lhe que sim, não havendo motivo para não estar lá. Ela sorriu e argumentou que poderia estar numa residência qualquer de um bairro chique. Afinal, saques a bens públicos aconteceram em Manaus, em várias épocas. Aquele
hall do teatro mesmo, dizem que havia esculturas e peças de mobília que não estão mais lá. Eu lhe garanti que o pagode chinês estava no Palácio. No dia seguinte, busquei Madame Antonia Carradot no hotel e fomos direto ao Palácio Rio Negro. Subiu lentamente as escadas. Foi direto à sala onde estava o pagode chinês. Perguntou se podia sentar em uma das cadeiras. Em princípio é proibido, estávamos num museu. Mas os anjos e demônios que guardam esse Palácio permitiriam que ela se sentasse. Estávamos sós. Antonia sentou-se na cadeira de balanço, olhou para o móvel, pensativa. Duas lágrimas fortes rolaram. Jamais esquecerei aquela cena. Não quis ver mais nada. Saímos do Palácio. Chovia como sempre chove na Amazônia. Antonia entrou no carro. Levei-a ao aeroporto. No caminho, contou-me que estava viúva do francês com quem se casara. Sua única filha era médica, formada pela Sorbonne. Tinha quatro netos. Parece que querem repovoar a França. Todos esses detalhes eram interessantes, mas ela não me contou e eu não tive coragem de perguntar que segredos, que juras de amor entre ela e Roberto, que mistérios teria aquele lindo móvel – o pagode chinês –, o que teria aquilo por testemunha? Antônia retornou discretamente para Paris, levando consigo esse segredo tropical, que, com certeza será debulhado muitas vezes, às margens do Senna.
Au revoir, Antonia Carradot.