João Bosco Botelho
A história evidencia com fartos registros que o estudo do corpo humano, escondido pela pele, encontrou dificuldades nas estruturas de poderes das crenças e idéias religiosas, notadamente, nas do monoteísmo. A justificativa da resistência está contida no dogma do homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus.
Os teóricos do monoteísmo obrigaram-se a contornar dois empecilhos, aparentemente insolúveis, refletidos na realidade: a forte tradição politeísta anterior e a diversidade humana. Foi precisamente na fantástica superação desses dois problemas que a narrativa da criação se transformou no ponto culminante da epopeia teológica monoteísta.
O cristianismo introduziu algumas mudanças importantes na estrutura do espaço sagrado oriunda do judaísmo. Ao contrário dos israelitas, acrescentou certa oposição entre o físico e o espiritual (Mt 10,28). O ser humano, agora plenamente concebido como dual, isto é, corpo e espírito, deveria ser o instrumento para servir a Deus (2Cor 5,10 ).
Todavia, o Novo Testamento manteve do Antigo Testamento o mesmo sentido mítico em torno do sangue (Mt 16,17 e 1Cor 15,50). Igualmente como o sangue dos animais sacrificados por Moisés inaugurou a Antiga Aliança entre Deus e o povo eleito, a Nova e Eterna Aliança foi sacramentada por Jesus com o seu próprio sangue (1Cor 11,25 = Do mesmo modo, após a ceia, tomou o cálice dizendo: Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei o em memória de mim).
A palavra correspondente de anatomia em árabe — “ilm al tasrib” — é precedida pela raiz “saraha” que significa trinchar, cortar, separar. Como o islamismo entendeu a criação dependente e sequenciada (Sura 23,13 14 = Depois, transformamos o esperma em coágulo, e o coágulo em óvulo, e o óvulo em osso, e revestimos o osso com carne. E era mais uma criatura. Louvado seja Deus, o melhor dos criadores), a inevitável intervenção do exame, dilacerando a carne, foi seguidamente impedido pela convicção de que a integridade do corpo era indispensável à condução da boa morte.
Os médicos, cirurgiões, artistas e pintores, no Renascimento europeu, começaram um movimento conjunto para levantar o véu opaco que cobria os músculos e as vísceras. A harmonia dos limites interiores do corpo desvendado encantou a todos e fez vibrar também a caneta dos poetas e os pincéis dos artistas. A sensibilidade de Leonardo da Vinci (1452 1519) buscou a profundidade da forma e produziu desenhos dos ossos, das artérias e veias com soberba perfeição.
Ilustração: Leonardo da Vinci (1452-1519).