Jorge Bandeira
O Rei geriátrico é posto em cena na peça Hoje sou um: e amanhã outro, pela Cia Vitória Régia, regida por Nonato Tavares, na sequência de uma trilogia programada para este singular e inclassificável autor do teatro brasileiro: Qorpo Santo. O ciclo fecha-se, segundo nos indicam, com As Relações Naturais. Vamos à peça: O regime político aos frangalhos, um reinado louco que está perdido nas próprias burocracias que engendrou, mas trata-se de uma farsa barroca, onde o encenador prioriza o que de melhor encontra-se em Qorpo Santo, o brincar na cena, a liberdade sem limites no criar as mais prosaícas circunstâncias que fazem da trama uma delícia de se acompanhar, feito súditos da insanidade. E a brincadeira não nos deixou nestes 40 minutos em que pontificou este rei, da mesma linhagem que fez surgir, tempos depois, obviamente por pura coincidência, o Ubu Rei de um certo Alfred Jarry.
A inserção dos elementos “regionais”: o boi, a toada, os políticos locais, nada escapou dos éditos e decretos lunáticos do barroco rei, que ostenta como forma ultrapassada, a linguagem quinhentista. Isso nos meados do século XIX,, quando o romantismo que envolvia a realeza no Brasil já estava sucumbindo às trapaças republicanas, ou seja, o Rei já está velho, caduco e as fraldas devem ser colocadas nele para que a merda real não escorra pelo palácio, para que o poder republicano não entre com sua higienização e peça a cabeça do Rei, como aconteceu na Revolução Francesa. Coisas do poder, uns estão equilibrados nele, enquanto outros tentam entrar e se locupletar dele, de qualquer forma ou meio. Maquiavélico rei, mas que trama apenas em sua incapacidade de ser são, lúcido.
A montagem de Nonato Tavares é de uma elegância em detalhes, como é de praxe em suas obras. A roupa como estética do barroco acompanha o zeloso trabalho de Koia Refkalefsky (que também é a Rainha), sendo importante destacar que esse barroco funciona com poucas variações cromáticas, onde o vermelho e o negro são as mais evidentes no palco, o que facilita a iluminação, com precisas alternâncias de focos e de refletores e suas tonalidades.
O quinhentismo linguístico foi uma opção de garantir o registro da época de Qorpo Santo, e a cavalaria galopa de forma absurda, e lembra os cavaleiros medievais do Monty Python no “em busca do cálice sagrado”. As referências a Alfred Jarry e ao clássico personagem do Ubu Rei são notórias, e que coroa de Rei é aquela, de efeito cênico deslumbrante, não dá para imaginar mais aquele Rei sem a sua estonteante coroa. A pomposidade do figurino, a maquiagem, tudo foi calculado com zelo máximo pela produção e pelo encenador.
A loucura pelo poder atravessa etapas históricas e prossegue por toda civilização, antiga e futura, e entre a tênue linha entre sanidade e loucura, encontra-se o poder, os mandatários, semiloucos num mundo que teima a se tornar curado, uma tarefa vã, de terrível constatação. Qorpo Santo já alertava em seus textos sobre essas questões paradoxais, existenciais e políticas. Vivemos a insanidade de nossos refluxos de lucidez. A música na medida certa, sem arroubos desnecessários, faz da sonoplastia ao vivo desta obra de 40 minutos um espetáculo meticuloso, não barulhento, que chega aos ouvidos de forma suave, mas contundente.
As damas que acompanham a Rainha são invólucros de uma desfaçatez, dançarinas provocantes de um boi-bumbá de “Paristins”, por isso que o Rei passeia em seu boulevard de Versailles. Para relaxar, para se esquecer... Os Soldados, com seus figurinos à sadomasoquismo, lembram os centuriões na versão moderna das dominatrix. Os decretos absurdos pululam de um palácio feito colônia de loucos, onde o ministro tenta, em vão, subverter uma ordem; claro que não consegue, pois o caos domina sempre o ambiente, mesmo nos momentos de aparente controle físico e emocional do Rei, mesmo nos seus destemperos de personalidade e na sua senilidade.
Um dado curioso e que remete aos aparatos da nobreza no Brasil: nos tempos do império realmente havia uma equipe que tratava da higiene do Rei, e alguns tronos tinham um fundo falso, espécie de vaso sanitário, para quando o Rei participasse de uma longa reunião não precisasse interrompê-la, evacuando ali mesmo no “trono-vaso”. Um escravo, então, recolhia a merda real e a levava no penico real para a rua real. Era dessa forma mesmo. A Atualidade em Qorpo Santo é incontestável, e por mais que seja uma precipitação e até mesmo preciosismo patriótico vinculá-lo às vanguardas teatrais que o sucederam, é notória sua capacidade de inovar nas letras e na dramaturgia feitas naquele momento histórico, nos meados do século XIX.
Um teatro límpido e objetivo, de uma trupe que funciona perfeitamente bem no que se propõe a colocar em cena, e mesmo que algumas falas tenham se “atropelado” ou que engasgaram na voz da Rainha, tudo isso é irrelevante, pois a perda de voz da Rainha também representa, no meu ensejo de observador não implacável, a própria fraqueza do poder real. A cenografia econômica de Nonato Tavares, um bobo musical e um trovador que são este duo da sala real, tudo se encaixa na proposta de cena. Uma cena, aliás, que de tão simples levou o público a aplaudir o “voo da cavalaria”, num movimento tão simples, mas que transmitia uma maneira de brincar e de sonhar, tal qual uma Cavalgada das Valquírias num palco onde esse mesmo público fez esforços pendulares com a cabeça e pescoço, este, o único problema a ser resolvido, evitar este incômodo ao espectador, pois o mesmo plano de cadeira no palco do Teatro Amazonas impossibilita visão total das cenas. Mas isso não chega nem a coçar, pois o riso aparece e depois a gente trata do torcicolo. E viva o Rei!
Manaus, 10 de outubro de 2010