Amigos do Fingidor

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A fragmentação das torres – 10

Marco Adolfs


Vovó Lucinda esquece a vida


“Agora nublou... Nublou?... É isso mesmo?... Sei lá? O Cristo não apareceu... Que foi que houve com ele?”... Repetir, repetir. Repetir sempre as mesmas frases e palavras como um recurso necessário à sobrevivência da memória e do corpo envelhecido. Vestígios do que foi outrora visto e escutado. Um esforço enorme, lembrar as frases e as fisionomias aparentes daquela gente ao redor. E as pessoas que já morreram aparecendo do nada. Como tramas de um novelo. Havia ladrões roubando tudo. Roubando o tempo e o espaço, inclusive. O que acontecera com aqueles prédios? Como trazer a vida de outrora para o agora. Mas esquecia. Esquecia, sim. Esquecia o dito há poucos instantes. Fantasmas que iam e vinham. Enfraquecido e sem controle, na verdade. As ligações cada vez mais sem força. Idiota. Quantas vezes ela não chamou os outros de idiota. Julgou; condenou. Condenou o erro dos outros. O deslize infantil dos outros. E agora estava ali, na mão dos outros. Impotente; sem dente; sem garras; sem presente. O nada; o vazio. Esperando. E tentando lembrar o que gostaria de saber. E relembrando o que gostaria de esquecer. Contava histórias e mais histórias com os restos de lembranças que flutuavam em sua cabeça. Lembranças como se fossem ilhas luminosas; onde, o seu desespero de sentir-se náufraga, se agarrava para sobreviver. E então circulava pela casa como um zumbi da existência. Falando com as paredes brancas. Inventando histórias sem pé nem cabeça. Como ela mesma se sentia então. Sem pés nem cabeça. Escondendo pílulas e restos de comida nos bolsos. Dormindo na espera da morte que insistia em não chegar. Uma morte que brincava de esconder-se pelos antros escuros de sua mente elástica. Solta no ar. Mas era bom brincar com todos os que lhe seguravam as ancas e lhe limpavam as fezes. Mas de vez em quando seus restos de consciência, fragmentos da memória, clamavam então pelos rostos do seu passado. Aos que já haviam morrido. Fulano! Fulano de tal! Morreu? Aí, era muito ruim. Quando alguém dizia que “fulano de tal” havia morrido. E aquele momento de sonhos e delírios então aparecia. E passava a chorar sem mais nem menos. Chorar a morte de quem ainda não morrera. Pensando na vida de quem sequer existia. Esses eram os seus fantasmas. Criados do nada. Então dormia para descansar enquanto o Cristo da montanha não aparecia para lhe salvar.

F I M