Amigos do Fingidor

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Gabriel saiu para almoçar 1/15

Marco Adolfs



Naquela manhã, quando acordou, Gabriel Sombra sabia que era mais um domingo. E, como em todos esses dias de domingo no centro da cidade de Manaus, tudo deveria estar fechado. Lojas, bancos e lanchonetes. Pessoas desapareceriam das ruas do centro como em um passe de mágica, acentuando agudamente a sua já crônica e cultivada solidão. Com exceção da feira que se estendia por toda a extensão da Avenida Eduardo Ribeiro, seu divertimento continuado, carregando a sua solidão horrorosa, seria ir, após o almoço, até a livraria Saraiva do Shopping Manauara e lá ficar lendo um livro qualquer até o anoitecer, quando então voltaria para casa, para dormir. Gabriel Sombra era um senhor de um metro e cinquenta de altura, carregando uma corcunda inevitável, e que vinha “vivendo precariamente, há mais de vinte anos” – como gostava sempre de ressaltar aos poucos conhecidos com quem trocava um dedo de prosa –, em um quartinho de poucos metros quadrados de um prédio localizado nos fundos de uma vila de casas no começo da rua Lima Bacuri, perto do Colégio Estadual Pedro II. Lugar suntuoso do saber, onde, no passado, Gabriel Sombra ministrara suas famigeradas e bem elaboradas aulas. Poeta e professor de uma Manaus do passado e que parecia, a seus olhos lânguidos e observadores, não existir mais. Gabriel vivia então precariamente instalado em seu pequeno apartamento nos fundos daquela vila, rodeado de revistas, livros e a poeira inevitável por todos os lados. Uma escolha de vida que aos seus poucos amigos impressionava, mas que àquele espírito sozinho servia como conforto para as noites passadas naquelas quatro paredes daquele quartinho alugado. Uma geladeira nunca descongelada, uma rede puída e esgarçada servindo como cama, algumas poucas roupas velhas e centenas e mais centenas de livros e revistas jogados por todos os lados eram os seus únicos bens. Ah! Sim, havia ainda os silenciosos e monásticos incensários, que Gabriel Sombra espalhara pelos quatros cantos do seu apartamento e que gostava de acender para pacificar o espírito. Enquanto no auge de seu sucesso literário, Gabriel Sombra passava esses domingos vazios em casas de admiradores que o convidavam para poderem apenas posar junto a um intelectual de sucesso. Mas, agora, quando ninguém mais o convidava para coisa nenhuma, Gabriel, o poeta laureado, tornara-se um daqueles idosos solitários que, por uma determinação própria e distinta da existência, relaxavam de qualquer condição normal de vida humana e se entregavam ao silêncio de um ostracismo velado de lembranças furtivas. Mas Gabriel também não era um velhinho qualquer, desses que andam pelas ruas implorando por amor e consideração dos outros. Sombra tinha um orgulho próprio que muito lhe reconfortava a alma ao longo das ruas e dos seus momentos de solidão. Havia um extenso e diversificado conhecimento acumulado em seu cérebro, além de uma propalada e exaltada condição humana de ser descendente direto de obscuros nobres franceses, que durante os seus períodos de solidão lhe apareciam em seu quartinho para lhe reconfortarem perante a ignorância do mundo. “São as novas invasões bárbaras!... Os verdadeiros intelectuais vivem em um gueto!”, exclamava de vez em quando Gabriel Sombra, o poeta, do alto de sua sabedoria, reclamando da ignorância de muitos...