Amigos do Fingidor

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Sífilis: a doença no lugar do pecado

João Bosco Botelho



Durante milhares de anos os homens utilizaram a falsa relação doença-pecado para intervir no controle social. É possível associar essa mesma concepção aos temores coletivos em torno da fealdade e da morte anunciada pela sífilis.

Desde o uso generalizado da Penicilina, após a II Guerra Mundial, essa doença não representa mais perigo à sobrevivência humana. Porém, nem sempre foi assim. A sífilis já impôs grande estigma, que significava a certeza da incapacidade física, da loucura e morte.

Foi o médico Jerônimo Frascastoro (1483-1553), nascido em Verona, na Itália, quem escreveu , em 1521, a obra que o imortalizou: “Syphilis Sive Morbus Gallicus”. Nesse livro, escrito em versos, pela primeira vez, estava clara a descrição da doença com a atual denominação e o caráter epidêmico:

Vi vários casos de uma semente má desconhecida
Traziam expostas já de algum tempo
Por toda Europa, parte da Ásia e da Líbia qual tempestade
Irrompeu no Lácio, por causa da triste guerra dos gauleses
E recebeu o nome daquela gente

Nos versos 76-80 e 113-115, mesmo com a inegável genialidade, Fracastroro sucumbiu às pressões eclesiásticas e associou claramente a sífilis à sexualidade:

Quando nas pastagens ao lar livro longamente: e então se firmaram os vícios
Oh! tu que esperas a liberdade pelo trabalho
Pouco te opões ao cuidado que a todos domina
Princípios: com esforço de memória guarda estes preceitos
Embora pouco os prazeres do amor: molestem face toda a vida

O personagem central da narrativa é um pastor tão devotado ao rei que acabou por divinizá-lo. Como castigo sofreu a fúria dos deuses, manifestada sob a forma de uma doença, até então desconhecida, que Fracastoro denominou “syphilis”.

Em decorrência do completo desconhecimento que envolvia a doença naquela época, ela era conhecida por diversos nomes: mal de Nápoles, mal alemão, mal dos cristãos, mal dos judeus e outros. É evidente que cada grupo social tratava de atribuir ao outro a responsabilidade pelo problema. O tratamento consagrado, até o século XVIII, era realizado com o paciente no interior de um barril, onde inalava o odor oriundo da cocção de mistura mercurial.

Com ou sem o pecado pré-concebido, a sífilis tem sido curada pela penicilina. Esse resultado obrigou o preconceito da doença-pecado ser redirecionado para outras enfermidades.

Ilustração: método para "tratamento" da sífilis, no século XVIII.